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Recentemente, Manuel Fernandes, médico de cirurgia oncológica no Instituto Português de Oncologia (IPO), foi nomeado conselheiro do Ano Municipal da Saúde pela Câmara Municipal de Paços de Ferreira. Um convite que o deixou “muito lisonjeado” e com o sentimento de “gratidão”, ficando a promessa de “contribuir para uma comunidade mais informada e saudável, para tentar melhorar a saúde desta comunidade com quem tenho muito carinho”.

As palavras são de um homem com uma história de vida “um pouco atípica”. Filho de emigrantes naturais de Sanfins, nasceu em França, país onde viveu até à entrada para a faculdade. Dos anos vividos em terras francesas, recorda as vindas a Portugal, mais precisamente a Paços de Ferreira.

“Só conhecia o concelho no tempo de férias e era sempre tudo muito agradável. Eu vivia em Paris e vir era sinónimo de liberdade, num tempo diferente claro. Sempre tive um grande empenho na escola, jogava futebol federado, tinha uma vida com muitas tarefas e muito intensa. Então, naqueles três meses de férias escolares eu sentia-me ‘um pássaro fora da gaiola’ e era um motivo de grande alegria. E foi assim que me familiarizei e criei algumas amizades”.

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Em 2023, a Câmara Municipal de Paços de Ferreira atribuiu a Manuel Fernandes a Medalha de Mérito Municipal de Ouro

Aos 18 anos, sozinho, mudou-se de balas e bagagens para ingressar na Faculdade de Medicina, no Porto (Hospital de São João). Anos antes, os sonhos eram outros. Manuel Fernandes ambicionava ser piloto de avião, mas a vida, “feita de percalços”, levou-o até à medicina. “Eu não queria ser médico, mas uma história familiar pesada levou-me até esta área. Perdi um irmão, mais velho – com 2 anos – associado a um erro médico. Esse drama sempre ficou na família e, de alguma forma, senti-me na obrigação de tentar ‘corrigir’ e de enveredar pela medicina na tentativa de que mais nenhum pai pudesse sofrer a perda de um filho como os meus pais sofreram”, conta.

Foi aprendendo a “gostar” da área e com uma carreira profissional de 25 anos está convicto de que a medicina “vai muito para além daquilo que é a seleção objetiva pela notas. Eu tenho uma visão muito mais humana da medicina e isso não se aprende nos livros. É preciso um sentimento altruísta, de querer e ter vocação para querer ajudar. Isso vem na educação e valores morais transmitidos pelos pais e pela nossa personalidade. É nesse aspeto que me encaixo perfeitamente naquilo que faço”, garante o médico.

“Lidar com o desafio do drama da oncologia vai muito para além daquilo que é a doença”

Manuel Fernandes acredita que a vida “tem um percurso tortuoso”, mas devemos “estar atentos, porque às vezes aparecem pequenos sinais e que determinam o nosso futuro”. Sinais que determinaram o “acaso” de enveredar pela especialidade de oncologia. Apesar de ter “o perfil para otorrino, uma das melhores notas e a vida formatada nesse sentido”, uma visita ao IPO fê-lo seguir um rumo diferente. “Uma semana ou duas antes do exame da especialidade, o meu pai pediu-me para visitar um amigo que estava internado no IPO e onde nunca tinha entrado. Fui muito remitente, porque estava nas vésperas de um exame que ia determinar o meu futuro, mas no momento em que lá entrei disse logo para mim mesmo ‘qualquer cirurgia serve, logo que seja neste hospital. É aqui que me revejo e que quero trabalhar'”.

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Em 2023, a Câmara Municipal de Paços de Ferreira atribuiu a Manuel Fernandes a Medalha de Mérito Municipal de Ouro

E assim foi. Desde 1998 que Manuel Fernandes convive de perto com a realidade da oncologia, uma área “muito sensível. Lidar com o desafio do drama da oncologia vai muito para além daquilo que é a doença e o próprio doente. Habitualmente, é um drama de toda a família e eu aprendo muito com os meus doentes e já sofri graves influências”.

A experiência vai-se acumulando e não tem dúvidas de que “ninguém fica insensível de conviver diariamente com esse desgaste da pressão e da vida oncológica. Quem lida constantemente com potenciais derrotas, pela perda de alguns doentes, pela própria biologia do tumor, é muito complicado. Infelizmente, já sofri e já tive muitos pesadelos e demónios associados a alguns doentes“, garante.

Dormir sempre com a consciência tranquila, para mim, é fundamental

Momentos de perda que não o fazem esquecer que dá “sempre o melhor” enquanto profissional, anulando o sentimento de falha. “Dormir sempre com a consciência tranquila, para mim, é fundamental. É ficar com a sensação de que lutei enquanto era, humanamente, possível para o doente. Graças a deus tenho sobreviventes de longo prazo, que me são gratos. É esse reconhecimento que dá sentido à minha vida profissional. É muito gratificante e dá-nos alento na tentativa de missão e de responsabilidade em querer ajudar os outros”.

25 anos depois da escolha pela medicina, e pela oncologia, Manuel Fernandes sente que cumpriu o propósito que o levou a fazê-la. “Luto para isso e tenho a consciência tranquila. Acho que nasci para isto. Adoro a minha profissão”, diz.

Perante as muitas histórias de luta contra o cancro, manter-se “bem mentalmente” durante tanto tempo tem sido “um desafio”, ultrapassado com “uma família fabulosa” que lhe permitiu “encontrar, fora do trabalho, escapes para poder aliviar a pressão”. O refúgio acontece, “muitas vezes, nos amigos, mas sobretudo no desporto. Isso para mim é essencial. Fiz atletismo, várias maratonas e meias maratonas, muitos trails, porque precisava de alguma coisa que me desgastasse fisicamente, para pensar a medicina de outra forma, com uma visão mais leve”, explica.

Os médicos “não são extraterrestres ou máquinas de inteligência artificial, são seres humanos que sofrem. Já chorei por muitos doentes. Para além disso, sacrificamos muito a nossa família. No meu caso, trabalho, em média, cerca de 80 horas por semana (no IPO e outras instituições). É uma carga horária muito pesada e é fundamental ter equilíbrio e apoio na retaguarda noutros aspetos”, assume Manuel Fernandes.

Humanização na relação com o doente

“Feliz e realizado” é assim que se sente a exercer a medicina, mas “mais importante do que isso”, é a “sensação que os doentes têm essa perceção, é motivador para eles também“, É importante, na relação e tratamento de doentes oncológicos, “transmitir confiança, serenidade e humanidade“, sublinha.

Manuel Fernandes considera a humanização o ponto “mais importante” na relação com o doente, “sobretudo num contexto da oncologia. É preciso estarmos sempre muito atualizados. Tenho a sorte de trabalhar numa instituição de excelência nessa área e que me obriga a estar constantemente atualizado. E transmitir esse conhecimento e experiência aos mais novos é, também, motivador. ‘Obriga-nos’ a estarmos atualizados para acompanharmos a evolução da medicina moderna”, explica.

Uma certeza que o faz afirmar, prontamente, não se “arrepender” das escolhas que foi fazendo durante o percurso profissional. “Tenho noção de que escolhi a melhor especialidade . Digo sempre aos meus filhos que é muito difícil escolher uma profissão, mas eu tive a sorte de encaixar plenamente“.

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Infelizmente, a medicina vive tempos desafiadores

Em 25 anos de medicina, Manuel Fernandes assistiu às mudanças que a modernização e as necessidades da população exigiram, mas hoje traça um cenário de “profissionais desgastados. Infelizmente, a medicina vive tempos desafiadores, que foram agudizados pela crise pandémica. Demos o corpo às balas para tentar cumprir o dever cívico e houve um grave impacto na gestão do serviço de saúde, organização dos mesmos”.

O médico aponta, também, para a “falta de reconhecimento da tutela nas políticas de saúde. Isso gera muita frustração. Para além disso, temos um sub-grupo, muito grande, de profissionais de saúde que se reformaram nestes últimos anos. A sobrecarga e ausência de apoio faz com que tenhamos um grupo de médicos e profissionais de saúde já desgastados, idosos e que têm pouca capacidade para dar resposta”, alerta.

Mas a esperança e a “reforma profunda que o Sistema Nacional de Saúde sofreu com a criação das ULS, e das unidade de saúde familiar vai tentar responder a isso. Vai ser fundamental um esforço e reforço de efetivos e de verbas financeiras para conseguir dar essa resposta”, acrescenta ainda.

O conceito de felicidade na visão das novas gerações

O sonho de ser piloto de aviação ficou no passado, mas não impediu Manuel Fernandes de “concretizar outros sonhos que estavam retidos” e é esse o exemplo que passa aos filhos, independentemente, das escolhas que façam. “Nunca lhes impus nada, só quero que sejam felizes na área que for”.

O mais velho, 21 anos, está em engenharia eletrotécnica, o mais novo, 16 anos, está no 11.º ano. “Sou o primeiro médico na família e provavelmente serei o único. Nenhum deles vai abraçar a medicina e eu não os estimulo nessa perspetiva. A questão não são as capacidades intelectuais, é preciso nascer com alguma vocação para isso“.

A terminar, o médico oncologista, reconhece que as novas gerações apresentam uma visão “diferente” da vida e “valorizam outros aspetos. Não estou a dizer que é melhor ou pior, é diferente. Procuram a felicidade de forma diferente e privilegiam a qualidade de vida”, conclui.