o espetaculo tem de comecar joao marques
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As crianças ficam particularmente entusiasmadas com a véspera de Natal. Apesar do significado mais tradicional se relacionar com o dia 25, há uma excitação no ar, na noite anterior, que é imbatível: o encontro com familiares, os cheiros do jantar, o compasso de espera até à abertura dos presentes.

Na casa da família Silva a véspera é preparada com expectativa – os dois membros mais novos ultimam os preparativos do espetáculo de Natal, que ensaiaram, nas últimas semanas, com os primos. Um espetáculo de variedades, digno de ser posto em cena naquele que se afigura o dia mais feliz do ano. Ou se afigurava. Este ano, as crianças perderam a vontade de subir ao palco: a felicidade de rever os primos extinguiu-se, os cheiros do jantar deixaram de inebriar, a espera até a abertura dos presentes deixou de entusiasmar. Este ano, as crianças só esperam que a noite passe. O pai é médico – um profissional dedicado, com vários anos de carreira. Já passou por várias adversidades, mas as que tem sentido nos últimos anos são marcantes. Tem-se deparado com um hospital esvaziado: de colegas que se encontram esgotados de remar contra uma maré que teima em não cessar e de equipamentos, necessários ao funcionamento dos serviços. Às vezes não sabe onde procurar forças. Mas persiste, motivado por um sentido de comprometimento. Para ele, Natal é entreajuda. E é imbuído dessa visão que encontra energia para passar a noite de 24 de dezembro num serviço de urgência perto de colapsar. Este ano com mais desalento: ao sair de casa, encontra desilusão no olhar dos filhos.

Por outro lado, na casa da família Sousa a véspera de Natal é celebrada com redobrada alegria. Depois de uma pandemia, todos se voltam a reunir. Mas as festividades são interrompidas. O avô, com dificuldades de locomoção, tropeça e cai das escadas. Perde a consciência. A alegria dá lugar ao medo, o medo transforma-se em pânico: que se alastra como a pequena poça de sangue visível. Alguns membros da família mantêm a calma e requisitam ajuda. O avô é transportado ao Hospital com celeridade. Quando chegam ao Serviço de Urgência, são recebidos pelo Dr. Silva. O Dr. Silva avalia-o, submete-o aos exames adequados, trata da ferida. E aborda a família Sousa: explica aquilo que esteve a fazer. Responde às dúvidas, valida as emoções. E a família Sousa irrompe em lágrimas, agora de alegria. O avô está bem, tudo não passou de um susto. A família agradece com entusiasmo. O Dr. Silva fez – somente – aquilo que lhe competia. Mas enquanto se despede, sente-se reconfortado. E o ânimo reaparece, dentro de si. Subitamente, recebe uma chamada dos filhos. Conta-lhes o que se passou. E (re)encontra alegria nas suas vozes. Eles demonstram-se orgulhosos por aquilo que fez. E compreendem a ausência. Afinal, há sempre mais que uma maneira de encontrar o(s) significado(s) do Natal. E assim, despedem-se do pai, desligam a chamada e convocam os primos. O espetáculo – que tanto trabalho deu a preparar- tinha de começar.

Texto de João Marques.