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Sorriu para mim o alvo menino. Trazia no olhar a doçura do mel multifloral das montanhas mágicas do Montemuro e, nas mãos, segurava um pequeno cachorrinho que aconchegava ao peito. A sua voz suave lembrava o canto melodioso de um pequeno rouxinol e a sua pele clara envolvia-o numa áurea divina como se de um anjo se tratasse. 

– Menina, como se chama?

Esta vocação fez-me sorrir. Ninguém me chamava de menina há muito tempo. Quem era aquela pequena figura que apareceu do nada e me fez prender a atenção. Com certeza eu estaria a ter uma visão. 

– Menina, menina, como se chama e de onde é?

Olhei-o fixamente. Havia nele uma força magnética inexplicável que me fez sorrir e respondi pausadamente: 

– Sou a Alice, a do país das maravilhas. Conheces?

Deu uma gargalhada, acariciou o cachorrinho e olhando para mim respondeu:

– Alice! Ora…  Ora… essa não existe! Essa é do conto de fadas e tu és real. Sabes, eu sou o teu sonho.

Por momentos fiquei confusa: estaria a sonhar? 

Belisquei o meu braço e senti uma dor ténue percebendo que estava bem acordada. À minha frente estava uma criança de cabelos loiros com olhos acastanhados e de sorriso fácil. A rua onde estávamos era desconhecida e infindável.

– Menino, de fato eu não sou a Alice nem tu és o meu sonho. 

A pequena figura continuou o seu interrogatório olhando-me com os seus olhos luzentes como se eu fosse a figura mais bela da terra. 

-Como te chamas? Sei que não és a Alice.

– Sou a Filipa. E tu como te chamas?

– Eu sou o teu Sonho e tenho oito anos!

O menino continuava a olhar-me fixamente e sorria para mim como um girassol quando vê o sol. Comecei a caminhar pela rua e o menino neve seguiu-me com passos pequeninos e saltitantes para conseguir manter-se a meu lado, nunca largando o cachorrinho.

– Ó pequenote, não brinques comigo, eu já sou crescida. Diz-me como te chamas e de onde és.

– Eu sou o teu sonho.

– Então eu não podia ser a Alice e tu podes ser o meu sonho?

O diálogo foi discorrendo conforme as passadas dadas na rua arborizada, com pequenos bancos de jardim, em madeira luzente com pequenas estrelas incrustadas, espalhados ao longo do passeio em terra batida.

A rua, apesar dos grandes castanheiros e tílias ancestrais, tinha uma luz invulgar como se o sol vivesse nas próprias árvores já quase desnudadas e com os braços abertos para o céu. 

Havia no ar um aroma agradável, mas indecifrável, e ouvia-se ao longe um som suave de músicas natalícias.

– Filipa, eu sou o teu sonho!

Retomei de novo o pensamento: estava a sonhar! Era um sonho estranho, mas ao mesmo tempo agradável, inexplicável. 

– Então já que és o meu sonho como se chama o teu cão?

O menino parou de saltitar e em tom mais alto e duradouro respondeu:

–  Estrela, o meu cachorrinho chama-se estrela. Foi a nossa mãe que nos o deu. 

Por momentos paralisei. Quem era aquela criatura angelical, frágil e de uma beleza invulgar que dizia ser o meu sonho. Havia algo de estranho nele – tinha um cãozinho com o mesmo nome do meu e que me fora oferecido há muitos anos quando ainda criança. 

Respondi:

– Tu não és o meu sonho? O meu sonho morreu há muitos anos num Natal quando era como tu, pequeno e inocente. Quem és tu menino e quem é a tua mãe?

– Eu sou o teu sonho. Eu não existo no real. O que tu vês é o menino que deixaste de ser nesse longínquo Natal.

Esta afirmação fez-me recuar no tempo, regressar ao tempo em que ainda menino ou menina, nem sei, queria brinquedos diferentes daqueles que sempre me davam. Não gostava de bonecas, de bandoletes, de lacinhos, de vestidos, nem mesmo de brincar com a Inês, a minha prima. O que eu gostava mesmo era de jogar à bola com o João e com o Tobi. Adorava o boné que o João usava à guarda redes e sonhava ter o cabelo rapado, com uma pequena pala, como o Tobi. 

A minha mãe, contudo, obrigava-me a usar tranças e trancinhas, vestidos e saias horrorosas que ela, e as minhas tias, diziam ser maravilhosas, e que eu, com essa roupa, me tornaria a princesa mais bela que elas conheciam.  

Ficava triste com as decisões da minha mãe. Por que é que eu não podia usar um fato de treino e andar sempre de sapatilhas?

 E, neste preciso momento, e passados tantos anos, não sei se estou perante a realidade ou se estou a sonhar.

– Filipa, acorda! Eu sou o menino que tu deixaste de ser naquele Natal quando te ofereceram uma boneca e tu querias um carrinho. Lembras-te? Sim, deves lembrar-te. A tua mãe, a nossa mãe, e todos os familiares que estavam nessa noite de Natal disseram que um carrinho não era para meninas. E eu ou tu, tanto faz, sexualmente era uma menina, mas sentia-me menino. Nesse dia percebi que não podia ser quem eu era interiormente. Ninguém perceberia que eu não gostava de fitas, de bonecas e que gostava de brincar como se fosse um menino, e eu era um menino, eu sou um menino. Tu és um menino. Está na hora de seres o que sempre foste Filipa. Tu és eu e eu sou tu. O cachorrinho que trago ao colo foi a prenda que eu mais gostei. Que nós mais gostámos. A nossa mãe encontrou-o na berma da estrada e trouxe-o para casa. Foi um dia muito feliz. O cachorrinho podia ser para menino e para menina e isso alegrou-me. Percebes Filipa, eu sou o teu sonho.

 O menino que estava perante mim era a minha própria consciência. Eu não estava a sonhar, mas a refletir naquilo que realmente eu era ou desejava ser. Estava na hora de eu voltar a ser o menino que adormeceu naquela noite de Natal e despertar para a vida.

– Eu sou a Filipa menino sonho.

O menino sonho respondeu-me suavemente ao mesmo tempo que desaparecia na rua que começava a perder a luz divina que até então tinha.

– Tu és o Filipe. Eu sou a tua consciência profunda. Neste Natal vamos ser apenas um: não vais voltar a ser a Filipa nem eu o teu Sonho. A partir de hoje seremos apenas o Filipe. 

Texto de “Maria João