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Opinião: Natal também pode ser em janeiro

Redação

Aquele dia de consoada tinha começado bem cedo! A minha mãe estava na cozinha a preparar aquelas iguarias deliciosas! O aroma doce da canela invadia toda a casa. Os manos mais novos estavam um pouco irrequietos e não saíam de perto daquela árvore luminosa, com bolas douradas, o que tornava a nossa sala de jantar num espaço majestoso. Era a véspera de Natal.

A avó Cilinha, o tio Zé, os primos Manecas e Camila, a tia Amélia seriam os convidados. O meu pai tinha tido um concerto na noite anterior e continuava com vontade de dedilhar o seu violoncelo. O som misturava-se com os aromas inebriantes das especiarias.

A tarde trouxe alguma calmaria à casa! A avó Cilinha tinha chegado cedo e sentámo-nos junto da lareira da sala. Lá fora o dia permanecia cinzento, com aquela chuva miudinha que nos encerrava dentro de portas. O ambiente perfeito para longas conversas entremetidas com chá e chocolates que a avó tinha oferecido. Adorava ouvir a minha avó contar as histórias de outros tempos. O meu avô tinha-se juntado ao Universo e era uma das muitas estrelas que brilhava no firmamento. Os olhos da minha avó, de um castanho avelã, não sorriam tanto agora. Uma certa nostalgia entorpecia a sua face, que ainda fazia justiça à fotografia com moldura dourada, de uma jovem morena com cabelo negro à anos 60, residente na secretária da minha mãe.

O espírito da minha contadora de histórias predileta mostrava-se ausente. A magia de Natal tinha-lhe aniquilado as narrativas fantásticas. Uma profanação para aquela tarde invernosa e cálida, que as chamas da lareira consumiam com os seus tons vermelho-alaranjado.

- Avó, sabias que os povos Romani (ciganos) também foram alvo de perseguições durante o Holocausto? Estamos a realizar um projeto na escola e o meu grupo de trabalho está a pesquisar sobre este assunto. Tenho um colega, o Gaspar, cujos pais são dessa etnia e que estão a colaborar connosco na pesquisa. Eu pensava que só o povo Judeu tinha sido vítima da loucura de Hitler.

A minha avó transfigurou-se. O seu olhar faiscou e o brilho das chamas, que a tinha atirado para as profundezas das suas memórias, acordou-a daquele entorpecimento. De imediato percebi que a tarde de consoada voltaria a ser protagonista de belas narrativas fictícias e/ou reais. Comecei a acomodar-me para que as palavras da avó me embalassem e transportassem para outras galáxias. O seu conhecimento e perceção factual sobre a História do Holocausto instigou vivamente a minha curiosidade sobre a Segunda Guerra Mundial, com relatos precisos e acutilantes das atrocidades impiedosas e desumanas dessa guerra. Um gangue de fanáticos malfeitores! A tarde consumiu-se a discutir o assunto e a lamentar a discriminação em geral e a que essa etnia ainda hoje sofria. Romani ou Ciganos, contava ela, gabo-me de ter grandes e bons amigos entre eles. E foi o mote das longas amizades que lhe trouxe memórias de convivência com um ser especial: o meu avô! Convictamente afirmou que ele seria a personificação do verdadeiro espírito de Natal. Em boa verdade, as histórias emaranham-se e os seus percursos são muito improváveis.

-Estaríamos num janeiro muito rigoroso, na década de 60, dizia ela. Uma noite tenebrosa com chuva e trovoada; o vento uivava e as árvores contorciam-se. Os relâmpagos iluminavam o pequeno bosque perto da nossa casa. Num desses clarões, o vosso avô apercebeu-se de um acampamento de ciganos nesse mesmo bosque. Sem vacilar e apesar da minha tentativa para o impedir, preparou-se para sair. Antes de bater a porta pediu-me para arranjar muitos cobertores e bebidas quentes. Uns minutos depois, tínhamos o salão da nossa casa a abarrotar de gente encharcada até aos ossos. Era urgente trocar de roupa. O salão somou memórias às suas vivências. O teu avô avivou o fogo da lareira e os homens ajudaram-no a acarretar lenha. As mulheres ajudaram-me a servir as bebidas quentes. Com a certeza de que todos estavam bem instalados, demos as boas noites e retiramo-nos para o nosso quarto. Não consegui evitar chamar o teu avô à razão pela leviandade de abrir a porta da nossa casa a estranhos e, de certo modo, colocar a segurança da família em perigo. Com a sua benevolência habitual, lembrou-me que era Natal e que o verdadeiro espírito da época seria a generosidade e solidariedade para com o próximo. Natal em janeiro? Retorqui eu, enquanto me preparava para dormir. Já não lhe ouvi a resposta. Dormia o sono dos justos.

Mais uma vez a minha avó me fez sonhar! A voz embargada da minha mãe revelou a saudade. Com a chegada dos tios e primos, as histórias mudaram de protagonistas e a nossa casa voltou ao rebuliço que uma bela noite de consoada exige.

Texto escrito por Sofia Leal.