Nuno Mimoso é organista, maestro e cantor, bem como musicólogo consultor de várias instituições eclesiásticas e da tutela do património cultural. Com um pé na Alemanha e outro no Grande Porto, é o grande impulsionador do restauro do órgão histórico de Santa Marinha do Zêzere, no concelho de Baião. Embora tenha nascido em Matosinhos, são vários os motivos que ligam o músico português a esta região, seja os seus familiares oriundos de Penha Longa e Paços de Gaiolo, no Marco de Canaveses, sejam os órgãos históricos localizados em três freguesias do concelho de Baião.
Tinha apenas oito anos quando ouviu, pela primeira vez, um órgão de tubos ao vivo. A dimensão sonora “impressionou” e a falta de informação intrigou-o, já que para muitos aquele instrumento era somente um “armário”. Cravada na memória de criança ficou a sonoridade dum instrumento desconhecido com centenas de flautas e trombetas, mas sobretudo a sua sonoridade “antiga e rara. Nós visitamos muitos monumentos antigos e vemos a sua arte, mas fiquei fascinado ao escutar um som com 300 anos, porque isto é muito mais raro”, explica.
A verdade é que na sua infância, era quase impossível Nuno Mimoso escutar um órgão histórico em Portugal, porque foi exatamente nessa época que restauraram o órgão histórico de Matosinhos, construído em 1685. “Um organeiro veio da Alemanha para construir o órgão grande da Sé do Porto, captou discípulos portugueses que foram aprender com ele na Alemanha, e fundou uma Oficina e Escola de Organaria que existe até hoje em Esmoriz”.
Os órgãos de tubos eram os instrumentos mais caros, em que só as paróquias mais ricas ou os mosteiros podiam possuir. Não era qualquer músico que tocava esse instrumento, tinha de possuir uma formação exigente. O órgão dava um estatuto social de destaque à freguesia. Em 1834 houve um corte com esta tradição, o Liberalismo retirou os privilégios da Igreja, no final desse século a tradição dos órgãos desapareceu em Portugal.
Nuno Mimoso
Ao longo dos anos, Nuno Mimoso sempre teve um interesse eclético desde a pedagogia ao património, porque acredita que “o conhecimento é uma rede e tudo está interligado”, mas mesmo assim apurou o ouvido e decidiu investir no estudo da música sacra. Viveu durante 12 anos na Alemanha, um país onde ser assistente de catedral é “uma profissão muito respeitada e conceituada”. Mais tarde, regressou a Portugal para um doutoramento, mas também para dar consultoria no que diz respeito aos órgãos. Entretanto, foi contactado pelo departamento da Cultura e Turismo do Município de Baião que, durante o restauro do Mosteiro de Ancede, descobriu “um armário que ninguém sabia que era um órgão construído no Porto em 1812, e foi assim que fui recomendado a Baião”, conta.
Depois de ter iniciado uma pesquisa, Nuno Mimoso descobriu três órgãos, localizados em Ancede, Ovil, e Santa Marinha do Zêzere, onde se encontra o mais importante. Para o organista devolver este património à comunidade é “fundamental”, no entanto reconhece que é preciso “continuar a promovê-lo após o restauro. Existem cerca de 700 órgãos históricos em Portugal, em que cerca de 200 foram restaurados. Quando era criança nenhum órgão de tubos tocava, por isso, é importante que as pessoas apropriem-se do património e que os seus habitantes percebam que têm um bem cultural. Os zezerenses devem ser os primeiros a querer conhecê-lo e valorizá-lo”.
Tubos metálicos da fachada do órgão em restauro
Neste sentido, Nuno Mimoso espera criar diferentes atividades para as pessoas “apropriarem-se” do órgão, conhecerem a história e, quiçá, surgirem futuros organistas que continuem a “alimentar a máquina” e a “manter o órgão vivo”.
As freguesias de Santa Marinha do Zêzere e Ancede têm as duas bandas filarmónicas do concelho. Isto tem uma ligação à sua tradição de cultura musical, presente nos órgãos centenários hoje sobreviventes nas suas igrejas. As bandas filarmónicas nascem no século XIX e foram o continuar da alta cultura musical que só existia na Igreja.
Nuno Mimoso
A inauguração do monumento de interesse público e do órgão está prevista para depois da Páscoa.
Tubos de madeira em restauro
Este programa cultural, a desenvolver entre maio e novembro de 2024, inclui nove concertos didáticos, 40 visitas guiadas destinadas aos habitantes locais de todas as idades, e também quatro workshops para jovens interessados em aprender a arte deste instrumento. Os concertos incluem “explicações sobre o instrumento, a sua construção, os seus diferentes sons”. Nas visitas guiadas, o público poderá descobrir as 20 sonoridades antigas, ver a complexa máquina por dentro e o funcionamento dos três grandes foles, antigamente levantados pela força dos trabalhadores chamados “foleiros. Vamos começar por grupos locais como escolas, instituições, lares de idosos, misericórdia, bombeiros…”.
Os primeiros dois concertos serão realizados na ‘Inauguração’. Na abertura das festas de Santa Marinha do Zêzere, dias 13 e 14 de junho, os concertos intitulados ‘Dedicação’ vão contar com músicos que trabalham ou são originários de Santa Marinha do Zêzere. A terceira fase irá assinalar os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, relacionando o órgão com a poesia camoniana, dias 14 e 15 de setembro, sob o título ‘Exaltação’. Os dois últimos decorrem a 1 e 2 de novembro, nos dias de Todos-os-Santos e Comemoração dos Fiéis Defuntos, perspetivando para o futuro esse laço da comunidade ao seu órgão restaurado, sob o título de ‘Redenção’. Todos os concertos terão “preponderância de música portuguesa antiga”, com o propósito de “exaltar o património imaterial” que é a música antiga.
Se ainda há 30 anos “nenhum órgão praticamente tocava”, hoje a ambição é devolver este património à população e garantir que “não será mais um instrumento restaurado e esquecido, mas um catalisador de novos públicos, recolocando Santa Marinha do Zêzere na rota da cultura musical que viveu intensamente noutros séculos”.
O órgão de Santa Marinha do Zêzere foi criado por Jozé António de Souza, em 1793, no distrito de Braga. É formado por 792 tubos de 20 diferentes sonoridades: desde a flauta doce, o flautim, os flautados, o violão, a corneta, o clarão, o baixãozilho, o clarim, entre outros agora prontos para serem redescobertos.
Conjunto de Trombetas em restauro na Oficina e Escola de Organaria, do mestre organeiro Pedro Guimarães, em Esmoriz