Foi na madrugada de 16 para 17 de setembro que o mundo de Filipa Gomes "virou do avesso". Vive na Rua da Panchorra, em Tabuado, e teve o fogo à porta, nos trágicos incêndios que assolaram o concelho do Marco de Canaveses na última semana do verão.
Acordou com "o toque insistente do telemóvel e batidas fortes na porta". Eram os vizinhos a avisar que o fogo estava prestes a chegar. "Ainda meio atordoada, saí de casa e, ao olhar para o horizonte, percebi a gravidade da situação. O fogo avançava implacavelmente e o vento tornava tudo mais incerto, espalhava chamas de forma imprevisível. Mal tive tempo de trocar de roupa e, junto da minha família, começamos a regar o jardim e o terreno à volta da casa, numa tentativa desesperada de criar uma barreira contra o fogo. Mas não demorou nem meia hora para que as chamas chegassem ao outro lado da rua. O vento mudava de direção constantemente, e o fogo cercava-nos de todos os lados. Era como se estivéssemos no meio de um inferno em chamas. Uma chuva de faúlhas ardentes tomou conta da rua, nunca tinha imaginado um cenário tão infernal como aquele".
No meio de todo o caos, o primeiro pensamento de Filipa Gomes foi salvar a gata, que era a "única vida" que dependia completamente de si. "Peguei nela, coloquei-a no carro e levei-a para longe, para um local mais seguro, onde o fogo dificilmente chegaria. Voltei a pé para casa, num passo acelerado como se tudo dependesse de mim", recorda. Uma caminhada que foi "penosa. O fumo era intenso, o ar escasso e a visibilidade quase nula. Quando regressei, fiz o que pude para ajudar, mas tudo parecia fora do controlo. Na minha cabeça, a voz constante do medo gritava para fugir, mas como poderia? O meu marido, os meus sogros, cunhados, e um amigo polícia estavam ali, determinados a lutar até ao fim".

O cenário agravou-se e até amigos "tentaram ajudar", mas as estradas já estavam intransitáveis, tinham sido tomadas pelas chamas. "Sabíamos que estavamos sozinhos, não havia bombeiros que pudessem chegar a nós, estavam sobrecarregados a combater os fogos por todo o concelho. A esperança era mínima". No entanto, "uma estrelinha" protegeu Filipa Gomes e a sua família. "Um pequeno carro dos bombeiros passou pela nossa porta. Gritamos com todas as forças para que parassem. A carpintaria da nossa família, encostada à casa, estava em risco. Se o fogo a alcançasse, os materiais inflamáveis ali guardados poderiam causar estragos irreparáveis. Felizmente, os bombeiros ouviram o nosso apelo e ficaram para nos ajudar. O vento, numa viragem milagrosa, mudou de direção e afastou o fogo de casa. Quando tudo terminou, parecia impossível acreditar no que os nossos olhos viam. Tudo à nossa volta tinha ardido, mas a nossa casa, como por um milagre, permaneceu intacta. Era como se estivéssemos dentro de uma bolha sagrada. As chamas destruíram tudo, até os limites da casa, mas a nossa casa ficou ilesa", refere.
Semanas depois, Filipa Gomes ainda sente como se "tivesse sido apenas um pesadelo. Se calhar, porque a realidade foi tão dura que a minha cabeça prefere encarar aquela noite como se fosse um sonho, uma noite mal dormida. Naquela noite o que tomou conta de mim foi o medo. O medo predominante não foi pela minha vida, mas pelo receio de perder as pessoas que amo. Hoje, ainda que tudo pareça um sonho mau, agradeço por estarmos vivos e por tudo o que lutamos até ao momento esteja a salvo".

Para Filipa Gomes, é incrível como, no meio do fogo, "ao olharmos para a nossa casa, o instinto é querer levar tudo, salvar tudo. Mas, ao mesmo tempo, percebes que não precisas de nada, a não ser de ti e dos teus. No fundo, é só isso que importa para viver e ser verdadeiramente feliz. Porque tudo o resto é substituível, com maior ou menor esforço, consegues voltar a conquistar aquilo que perdeste. Mas, quando perdes alguém, nada preenche esse vazio. Ficamos mecanizados, obcecados por trabalhar para ter isto ou aquilo, e esquecemo-nos do que realmente importa: a família, os amigos. Eles são o nosso maior tesouro. Na madrugada de 16 para 17 de setembro, Deus fez questão de me relembrar disso".