José Aguiar, natural do Marco de Canaveses, partiu para Angola a 26 de setembro de 1973. Em conjunto com o seu batalhão foi recebido no Grafanil, onde se preparam, durante um mês, para o que iam “enfrentar na mata”. Depois “abalaram” para o Norte de Angola, onde ficaram mais de um ano, sedentos de regressar a casa.
O combatente marcoense, condutor de pesados e membro da CCS (Comandos e Serviços), instalou-se em Tôto. Fazia parte do comando do batalhão e, por isso, dava assistência às outras três companhias: “a primeira companhia ficou instalada a 30 quilómetros do Tôto, a segunda companhia foi para Bessa Monteiro, considerada a zona mais quente e onde o gatilho era mais perigoso, e a terceira companhia também ficou a cerca de 30 quilómetros de nós”.
Embora estivessem em pontos diferentes, ficaram todos, durante cerca de 16 meses, na mata. Para ‘sorte’ de José Aguiar, ficou numa companhia que “não era considerada operacional. As operacionais eram a primeira, segunda e terceira. Como a CCS era o comando de todos, instalava-se na melhor zona, fazia operações, mas eram mais leves, as pesadas eram feitas pelas companhias operacionais”, explica ao Jornal A VERDADE.
Pela lei, os militares teriam de estar 18 meses na mata, mas a verdade é que se deu o 25 de Abril e a revolução encurtou, sensivelmente, o tempo na mata para dois meses. “Só soubemos do 25 de Abril uns dias depois, estávamos em missão e só os que tinham um grau de escolaridade superior é que estavam a par das informações”.
Mesmo com o Golpe de Estado, a missão nas colónias continuava de pé. Aos 16 meses, foram transferidos para perto de Luanda, onde passaram mais dois meses, até completarem 18 meses no total, ao invés dos 24 previstos. “Fomos aliviados em meio ano de comissão”.
Os combatentes voltaram a pisar Portugal a 11 de março de 1975 e, em 2024, celebram 49 anos do seu regresso, com 38 almoços-convívio organizados.
“É a primeira vez que organizo o almoço-convívio do batalhão. É mesmo especial”
Para José Aguiar, organizar o 38.º almoço-convívio na sua terra tem “um gosto especial. É diferente”. Sem ter certezas, o marcoense adianta que estão previstas cerca de 150 pessoas, mas reconhece que “até pode ser um pouco mais. A maior força dos combatentes do nosso batalhão é do Centro para Norte”.
Por outro lado, também está consciente de que, com o passar dos anos, as pessoas “são menos. Muitos de nós estão a partir. A idade também começa a limitar a deslocação”, lamenta, emocionado.
Aos 71 anos, José Aguiar continua a referir-se aos combatentes como “familiares. Na altura não dávamos grande valor, porque eramos um de cada canto do país, mas ali, sem nos apercebermos, formamos uma família. Era um por todos e todos por um. Quando terminamos a nossa comissão e viemos para a vida civil, começamos a fazer uns encontros”. Nos primeiros convívios, José Aguiar não era tão assíduo. Começou por tentar “fazer-se à vida” e esteve, inclusive, emigrado e voltou para Angola. Mesmo assim, garante que nunca se esquece do seu primeiro convívio. “Foi em Espinho, quando cheguei perguntaram qual era o meu batalhão e disseram que estava um grupo da minha companhia. Olhei para eles e praticamente não os reconheci, consegui ter ideia apenas de um ou de outro, mas depois começamos a ir pelos nomes… disseram: ‘estavas dado como morto, só agora é que apareces…’. Foi um choque quando pegaram em mim e atiraram-me ao ar, foi uma emoção forte”, que recorda e consegue sentir até hoje.
Em Angola a convivência foi “menor”, mas o sentimento de que todos estiveram “no mesmo barco” permitiu criar laços fortes que se mantêm até hoje. Perante uma mesa cheia de petiscos, o convívio continua, na visão de José Aguiar, a ser a “prioridade. Falamos da guerra e das recordações dessa altura, e quando alguém parte fazemos questão de estar presentes”.
“A família ficou muito tocada e, maravilhosamente, comovida”
Em conversa com o Jornal A VERDADE, José Aguiar recorda um episódio recente, o falecimento de um colega nas Caldas da Rainha, na Sexta-feira Santa. “Quando morre um colega ficamos comovidos. Ele pertencia à primeira companhia, mas como estou responsável pela bandeira, por causa do convívio, convidaram-me e perguntaram se podia ceder a bandeira. Juntos, fomos prestar a nossa homenagem. A família não sabia de nada. Chegamos com uma coroa de flores e com a bandeira, manifestamos os sentimentos junto da família e dissemos que eramos do Norte e que eramos colegas. A família ficou muito tocada… fomos da Igreja até ao cemitério a transportar o corpo e a família ficou, maravilhosamente, comovida, porque afinal eramos amigos… agora, os familiares querem participar no lugar do pai”.
Embora se sinta “entusiasmado e emocionado” com a responsabilidade de organizar este dia, José Aguiar sabe que será “cada vez mais difícil manter os almoços. Estas memórias podem ser esquecidas”, lamenta, e, por isso, apela a que os filhos e netos marquem presença. “Era bom que os familiares continuassem com esta tradição, mas a sociedade está diferente e, por vezes, não vê este lado da guerra, qual o motivo de nos juntarmos”, lamenta.
“Para mim todas as mulheres dos combatentes são também elas combatentes”
Esposas, namoradas ou madrinhas de guerra todas eram importantes para apoiar os soldados durante a guerra. Na flor da idade, foi-lhes retirado o contacto com as mulheres que amavam e o carinho, mesmo que à distância, ajudava-os “a esquecer a pressão de andar com armas”.
Partiram para a guerra com apenas 20 e poucos anos, idade em que se faziam “à vida, que pensávamos em família e foram-nos roubados dois anos”. Quando abalaram para Angola, José Aguiar deixou em Portugal a namorada. “Até hoje é a minha mulher. Também a considero combatente, para mim todas as mulheres dos combatentes são também elas combatentes, porque nós fomos para lá, mas tivemos muito apoio delas de cá”.
Os combatentes viviam em casernas com cerca de 20 homens e, todos os dias, quando regressavam, vinham esperançosos de ver uma carta em cima da cama. “Era muito importante este apoio. Tinha também uma madrinha de guerra, que só conheci em fotografia, e só não a convido para o almoço porque não sei onde está. Mas foi tão importante e, sempre que podia, junto com a carta enviava 20 escudinhos”, recorda.
José Aguiar teve de crescer, amadurecer e voltar para a vida civil para ganhar “consciência” de que “não era suposto ser aquele o caminho de um jovem. No fundo, acho que nem sabia quem era. Não me questionava sobre o porquê de ir para a guerra, porque estávamos num regime diferente, sabíamos que tínhamos de fazer o serviço militar e que o destino era a guerra, a informação era escassa e não nos davam oportunidade de refletir. Aliás, fomos crescendo a ouvir ‘que quem não serve para a tropa não serve para nada’ e achávamos, fielmente, que só assim é que seriamos homens. Sentíamos que tínhamos sido os escolhidos, e na verdade… era outra mente”.
Até hoje, José Aguiar e todos os combatentes sentem que “ainda são uma família” e que o lema “um por todos e todos por um” permanece aceso.