eu vi nascer o menino paulo
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“Ninguém o viu nascer. Mas todos acreditam Que nasceu É um menino e é Deus.” Miguel Torga

Eu vi nascer o Menino. Se não visse, podia jurar a pés juntos não acreditar. Lembro-me como se fosse hoje. Esta coisa de ver nascer, de ver nascer o Menino, não é coisa que se esqueça assim! Se lá tivessem estado como eu duvido que não lembrassem!

Aquele dia, em que vi nascer o Menino, levantou-se e deitou-se frio. Foi dia que não esquece. Se não fosse por quem lá nasceu, de certeza que o recordaria: por muito pouco, quase fui posto fora de casa. Digo casa porque, sendo burro, não tenho uma casa como a vossa. A minha casa é a dum burro, sem cama e sem mesa, mas com palha tenrinha e manjedoura farta, que isto de trabalhar de sol a sol não é para um burro qualquer. E a verdade é uma: burro que é burro trabalha, mas também come e dá o seu zurro!

Como estava a dizer, lá em casa, naquele dia, tudo parecia diferente. No fim de tudo, até nem me importei. Mas digo-vos com sinceridade que aquilo de ter gente à fila, à porta de casa, a entrar e a sair, uns de boca aberta como a minha amiga vaca, outros felizes tanto quanto eu a teimar de coice, foi coisa de me virar do avesso. Tanta gente lá entrou que, se eu não visse nascer o Menino, até emburrava com aquilo!

E depois, sem ninguém se importar comigo, o que me deixou mesmo pasmado foi ver tudo, desgarrado de ternura até aos pés, tudo perdido a olhar o Menino! Tanto quanto deslumbrados os coelhos, as galinhas e os perus, e os alçados bigodes dos ratos, ao pai e à mãe brilhavam soltos os olhos rasos de alegria; aos pastores e às ovelhas nem se lhes escondia o susto nem a acanhada vergonha; até aqueles senhores esquisitos chegados a Belém em cima de uns primos meus, digo eu, mais altos e deformados nas costas… até esses, eu vi, com estes olhos que a terra me deu, a constrangida sabedoria a diminuir-se por debaixo dos pés.

Pudera! Até eu, habituado a tanto, um verdadeiro burro, nunca tal houvera visto! Imaginem só que até lágrimas me vieram aos olhos quando o Menino, mudo de doce silêncio, me enterneceu de tal forma o coração que se me desabaram os joelhos! Nem queria acreditar! Eu vi nascer o Menino…; só agora é que se me enxergou a vista!

Afinal, o Menino que eu via nascer como mais um menino a quem se acabou a casa, que embalado o céu dormia, à frente de quem enamorados desfilavam os pastores e os esquisitos senhores, afinal, o Menino era Deus!

O Menino, envolto em panos e deitado na manjedoura, na minha manjedoura, é Deus!

Que alegria! Que fortuna! Que noite linda! Que amor tão grande me faz rebentar, dentro, o coração!

Acordou! Se calhar fui eu! Já fiz asneira… tão veloz bati os cascos no chão! Sou mesmo burro!

Valha-me Deus!

 Não faz mal!

Nunca se ouvira tão doce voz de menino!

E fui eu, um burro a sério, quem O pus a bulir e a desfraldar-se-lhe a primeira e divina voz…; aquela voz que ainda hoje, depois de tão envelhecido tempo, gravada cá dentro, me aconchega a vontade de dar e amar e andar…, e apregoar a Deus e alastrar ao céu: eu vi nascer o Menino.

Texto redigido por Paulo Teixeira, Capelão do Hospital de S. João, natural de Vila Boa do Bispo.