Artigo de Beatriz Meireles, vereadora da Câmara Municipal de Paredes
Não sei onde começam os contos de Natal, mas creio ter programado este nos sonhos de uma criança.
Era uma casa e as casas são lugares de uma verdade que não existe em nenhuma das ruas da cidade. Talvez acrescente que em nenhum dos homens, a não ser quando há neve no jardim da casa e somos agasalhados pela própria pele.
Vestia-se de azul, de uma cor que só os artistas sabem pintar o céu. As janelas, mesmo envidraçadas, protegiam os ocupantes da casa de qualquer maldade, uma espécie de fato impermeável à chuva, um para-raios contra trovoadas. Havia apenas uma porta de entrada, mas a saída tornava-se sempre inevitável. E, para o pai da casa, abandonar por tempo indeterminado tornou-se uma obrigação, para que as paredes não fossem substituídas por escombros de guerra, tal como acontecera com tantas outras. Sem casas, todos os homens estão expostos às maiores atrocidades, violações e privações, sem memórias que possam guardar em segurança num daqueles cofres antigos do tempo dos nossos avós, com números dourados, que giramos de utopias até encontrarmos os números certos.
Mãe e filho permaneciam dentro da casa azul. No exterior, as andorinhas, brancas e imóveis, encrustavam-se no silêncio, assim estavam os dois habitantes mais dados a uma tranquilidade perturbável, justificada pela ausência que solidificou como argila.
A casa não ocupava muito espaço, mas a altura crescia em saudade. As divisórias estavam mais arrumadas do que o costume, as coisas simples consumiam os afazeres mais rebuscados, bastava que a mãe e o filho procurassem tudo na ternura. Por vezes, mergulhavam nas brincadeiras, ficando a boiar de cumplicidade inaudita.
Umas vezes, sentiam uma tristeza paralisante, principalmente quando iam dormir, abraçados para não se perderem de vista nem por um minuto no quarto da casa, com a porta bem fechada à chave. Nas manhãs sem uma réstia de esperança, à mãe custava-lhe levantar, mas, dada a destruição do edifício da escola, tornava-se uma professora letrada que faltava ao menino.
– São horas de acordar…
O corpo movimentava-se dentro dos lençóis no sentido oposto, sujeitando-a à repetição do pedido:
– São horas de acordar!
– Vou acordar para quê, mamã?
– Ora, para quê? É dia. Tens muito a aprender.
– Aprender que os homens são maus?
– Não, os números, as letras, os nomes dos rios, das cidades… Que dizes?
– Digo que não quero acordar, os homens são maus, magoaram as casas, as pontes e as estradas, os meus sentimentos, levaram o meu pai para lutar…
– Filho, é verdade. A mãe… – interrompeu as palavras que se seguiram por incapacidade em controlar as emoções.
– Não quero acordar, mamã, não quero! Se eu acordar deixarei de sonhar! O papá regressa sempre nos meus sonhos…
Outras vezes, na cozinha da casa, a mãe congeminava parcas refeições, mas que por infortúnio dividiria somente com o filho, que continuava, na sala de jantar, a colocar três pratos, três guardanapos, três copos e talheres, três garfos, três facas e três colheres.
Era a véspera na casa, o Natal chegou sem aviso, porém nada mudara nos hábitos dos habitantes. Sem o terceiro elemento apenas a última ceia consumara-se de lembranças felizes, de palatos e de cheiros únicos. O Natal mais doloroso chegou, a mãe e o filho ocuparam as suas cadeiras na mesa, comendo pão e bebendo dos cálices vazios, cujos líquidos, todos os líquidos, se verteram na terceira cadeira vazia. Não alimentaram conversas, não acenderam as luzes do pinheirinho, não havia pinheirinho na sala, apenas uma terceira manjedoura vazia.
O melhor presente abriu-se de espanto com a porta de entrada da casa:
– Dão-me um beijo de boa noite?