conto natal carlos queiros
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Finalmente a placa na beira da estrada indicando o nome da aldeia. Os dois automóveis seguiram mais um pouco, até as coordenadas do GPS lhes indicarem que haviam chegado ao destino.

Um caminho de terra batida, ladeado de muros de pedra velhos, coberto de eras e musgo, manchas de líquen, aqui e ali. De ambos os lados se avistavam bardos de videiras, e ao fundo um terreiro macio, bem calcado que a terra mais parecia um empedrado. A casa térrea, de pedra, portas de madeira coçadas pelo tempo de muitos anos volvidos, janelas baixas e vidros pequenos, rapidamente os fez parar os carros. Um cão corpulento e vagaroso veio farejar os pneus, com a segurança de que quem sabe quem manda. Era necessário que alguém tomasse a iniciativa de abrir as portas dos carros e saírem. Pois, mas o bicho cirandava e não tinha cara de bons amigos.

Dentro dos carros os ânimos dos passageiros não pareciam os melhores. Havia gestos e vozes que quase se ouviam no exterior.

Um mês atrás, Sofia e Helena, colegas de trabalho, e amigas – diga-se-, andavam às voltas, nas conversas de circunstância sobre o próximo Natal, pois que, ambas iriam passar a consoada a sós, com os respetivos maridos, o filho e filha, de uma e de outra. Sofia havia lido, em algum sítio, que uma câmara municipal, de qual não se lembrava, criara uma iniciativa para que famílias voluntárias quisessem fazer a passagem de Natal em casas de idosos isolados. E que, por sua vez, estes aceitassem o repto.

Ali estavam, diante da casita velha.

Uma mulher, cuja idade se denunciava no cansaço, no andar lânguido, roupa escura e um avental coçado, esfregando as mãos, como se quisesse limpá-las da farinha amassada, que nelas trazia. As rugas fundas do rosto não a impediam de um sorriso abundante e sincero. As faces um pouco rosadas faziam crer que haveria lume, lareira ou forno acesos.

– Rufino, desanda. Vai, vai… – Disse a velhota ao cão e ele encaminhou-se para a casota, ao fundo do pátio, por baixo de uma carvalha velha. 

Os visitantes abriram as portas dos carros, mais tranquilos. Os dois casais apressaram-se a cumprimentar a anfitriã, que lhes disse chamar-se Maria de Jesus, mas chamavam-lhe Micas, e era assim que deveria ser. Depois, ela puxou da voz gasta para chamar o seu Manel. Ele haveria de chegar já, pois era provável que estivesse no curral a tratar dos animais.

– Meninos saiam dos carros. Então? – Empertigou-se Sofia, abrindo a porta de trás do seu automóvel; saiu de trombas a filha. Carolina. Depois, do outro automóvel apareceu o Gonçalo. Repas a cair-lhe sobre os olhos, um breve sorriso para a velha D.Micas, mas o entusiasmo era pouco. Ambos os jovens não se conheciam. Disseram olá e de imediato Carolina perguntou ao outro adolescente se tinha rede no telemóvel. Ela acenou negativamente. Que aborrecimento.

– Ó porra, – disse Carolina, com um corpo esbelto e crescido para quem tinha apenas catorze anos. Gonçalo tinha quinze. Mas estava um homem, ou talvez o seu metro e oitenta, assim o denunciasse. – Nem net temos aqui? Indignou-se.

– Népia. – Disse o outro. As caras de enfado de ambos ainda mais se acentuaram.  

Carolina chegou-se discretamente ao ouvido na mãe e disse-lhe, de forma agressiva que “nem pensar ficar ali. Sem net, sem rede? Não conseguia e tinham de ir embora.” Sofia disse-lhe algo discretamente, que a filha deu meia-volta e foi olhar o horizonte, de braços cruzados, com um indisfarçável desalento. Gonçalo comportou-se melhor. Juntou-se aos adultos e assistia à conversa de circunstância que os pais mantinham com a dona Micas.

O senhor Manel apareceu de galochas. Bigode farfalhudo, boné enterrado na nuca, bem-disposto.

Ao longo da tarde, os adultos estavam radiantes. Era uma experiência partilhada, de coração cheio. Os visitantes da cidade estavam deslumbrados com a execução da ceia de Natal. Todas aquelas tradições. Os cheiros que emanavam da cozinha, os sabores da terra, as conversas fluídas; e uma noite em que a solidão não tinha porta por onde entrar. Porém, os jovens estavam entediados. De trombas; mal conversavam entre si. Sentados à mesa, os telemóveis ao lado dos talheres, estavam mortos. Não obstante, iam jogando algo e o tempo ia passando. Havia neles pressa que aquele tédio acabasse e voltassem à cidade.

Perto das onze da noite, o senhor Manel apercebeu-se de rebuliço no curral, que ficava nas traseiras da casa. Foi ver. Logo chegou.

– A boneca está a parir. – Disse.

– Tinha de ser agora? – Indagou a mulher. 

Os outros entreolharam-se sem perceber.

– É uma ovelha, chamo-lhe boneca, está a dar à luz. – Concluiu o anfitrião.

– Se não se importam, tenho de ir para lá a ver se corre tudo bem.

Os outros, ao contrário, do que se esperava, perguntaram se podiam assistir àquele momento. Era genial. E quando menos se esperava os jovens ficaram tão empolgados que foram os primeiros a saírem da mesa e correram para o curral. “Que top!” Disse Carolina”. “Mesmo! Vamos” Completou Gonçalo. Acenderam as lanternas dos telemóveis e em poucos segundos já viam um nascimento acontecer. Estava um frio avassalador. Entusiasmados, enquanto o velhote ajudava a ovelha, os jovens foram buscar lenha, acenderam uma boa fogueira ao relento, perto de um velho banco de madeira encostado à parede e junto da entrada do curral. Ao longe ouvia-se alguns uivos. O senhor Manel disse-lhes que era boa ideia terem feito a fogueira, pois que assim até os lobos não se atreveriam a descer a serra pelo cheiro do sangue.

O pequeno cordeiro tentava pôr-se de pé. O velhote levou palha nova e seca para que a mãe o pudesse agasalhar melhor.

O parto estava feito. E anfitrião voltou para dentro e aquecer-se junto à lareira e continuar os petiscos e a conversa com os convidados.

Gonçalo e Carolina quiseram ficar sentados lá fora, no banco de madeira, as chamas iluminavam-lhes os rostos. Conversavam. Do nada, parecia que os dois se conheciam há imenso tempo. E riam. Mexiam na fogueira, metiam lenha, levantavam-se, e voltavam a sentar-se. Pouco depois, Sofia foi levar-lhes umas mantas quentes para as costas. A noite avançou. Já de madrugada, Carolina sentiu sono e encostou a cabeça no ombro de Gonçalo. Dormitou. Minutos depois, acordou ao de leve e pediu desculpa por ter adormecido encostada no seu colo. O rapaz nada disse. Olhou-a, entre a penumbra da noite o trepidar das chamas, beijou-lhe os lábios. Ela não recusou. Um abraço bem apertado intensificou-se e as bocas não mais se largaram.

Pararam um pouco e ficaram a olharem-se. Tentavam perceber o que tinha acontecido. Ficou latente uma paixão improvável. Conversaram um pouco sobre isso. Combinaram algo para depois, nos próximos dias.

– Ainda bem que não tivemos net.– Rematou Gonçalo.