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Clemente Alves foi preso pela PIDE aos 20 anos e um dia antes de casar

Redação

Celebram-se os 50 anos do 25 de Abril e os 80 anos da "Revolta do Pão" no Marco de Canaveses: "é importante que os marcoense se orgulhem deste facto e que o celebrem".

Clemente Alves, natural da aldeia de Magueija, em Lamego, mas residente toda a vida ativa em Lisboa/Cascais, juntou-se a uma investigação sobre a cidade do Marco de Canaveses a convite de Fátima Vale, poeta e artista, e Isabel Baldaia, presidente da Associação GRUTA CCL - Teatro da Livração, e professora. Enquanto ex-preso político e membro da URAP (União de Resistentes Antifascistas Portugueses), Clemente Alves foi desafiado a recolher informações sobre os presos políticos no concelho. A informação que recolheram foi "surpreendente", já que descobriram que 175 pessoas foram presas, em Marco de Canaveses, durante a ditadura, das quais 23 no mesmo dia. "Achamos muito estranho", realçaram Clemente Alves e Fátima Vale. A pesquisa levou-os a descobrir um ato de resistência neste concelho, ao qual chamaram "A Revolta do Pão".

A 13 de junho de 1944, despoletou, em Marco de Canaveses, uma "revolta com muitas centenas de pessoas, talvez milhares... Os documentos dão conta de uma multidão que encheu o largo da câmara municipal". Mas porquê revolta do pão? Clemente Alves e Fátima Vale contam aos leitores do Jornal A VERDADE. "A primeira medida implementada pelo regime salazarista obrigava os produtores de cereais, sobretudo de milho e de trigo, a entregá-los ao Estado, em troca levantavam o racionamento da farinha e ficavam com sementes para produzir no ano seguinte. O regime não satisfeito, com esta medida drástica que levava fome a muitas famílias, entendeu impôr à população o levantamento de pão já confecionado em algumas padarias autorizadas, ao invés da farinha. Isto veio causar um grande impacto nas famílias, porque com um quilo de farinha as pessoas podem multiplicar e fazer mais pão, adicionando outros componentes, nomeadamente, fécula de batata. É um pão de má qualidade, mas enche, se fornecerem o produto final, as famílias ficavam mais apertadas, isto gerou uma revolta muito grande", descrevem acrescentando que "no dia em que se ia buscar o pão pela primeira vez, juntou-se uma multidão, tocaram os sinos a rebate nas aldeias, incluindo a sineta dos Bombeiros Voluntários do Marco de Canaveses. O povo estava revoltado".

Fátima Vale explica ainda que havia uma Comissão Reguladora do Comércio Local, cujo encarregado era José Lobo, filho do presidente da câmara e notário, Mário Alexandre Rebelo Monteiro Lobo. Este foi "quem sabendo com sabia" da mudança que ia haver com o racionamento, passou a informação de que a FNPT, o Instituto Nacional do Pão, viria no dia 13 de junho.

Nesse mesmo dia aconteceu a revolta: juntaram-se as mulheres da fábrica de papel, os 200 operários que trabalhavam numa obra na Ponte de Sobretâmega e centenas de trabalhadores de outras pequenas obras e empresas. Juntos, marcharam sobre a vila e foram-se aglomerando no Largo da Feira e em frente à câmara municipal, onde foram confrontados com as forças de segurança. "Criaram-se desacatos. Um padeiro, chamado pelo presidente da câmara, tentou convencer a multidão de que o pão que fabricava era melhor do que a farinha. Foi perseguido, escapou de ser linchado, segundo as palavras do relatório escrito pelo investigador do Tribunal Militar de Lisboa ao meritíssimo juiz de direito da comarca do Marco de Canaveses, porque se escondeu numa casa".

Terminada a revolta, o presidente denunciou à polícia os populares que foram "mais ativos" no processo. "Acabaram por ser todos presos, interrogados, sujeitos a procedimentos violentos para confessarem a sua participação na revolta e foram condenados".

Sem se alongar em mais pormenores, Clemente Alves destacou duas particularidades: "primeiro, tudo isto começou com as mulheres do Marco de Canaveses. Foram elas que deram origem a esta revolta, porque eram as mães e as responsáveis por pôr a comida na mesa, são as guardiãs da família, guardam o futuro e precisam de alimentar os filhos; segundo, Portugal alimentou o exército nazi. O nosso país é deficitário na produção de cereais. No entanto, o regime entendeu que seria uma boa oportunidade para encher os cofres, o chamado 'Ouro do Salazar'. Exportamos os cereais que Portugal não tinha para alimentar a própria população. Era tirar a quem já passava fome para vender 'as sobras de Portugal' aos alemães. Foi Portugal, em boa parte, que alimentou o exército hitleriano".

Falou-se da "Revolta do Pão", pela primeira vez, na Escola Secundária do Marco de Canaveses

Clemente Alves e Fátima Vale relataram os acontecimentos da revolta, pela primeira vez, na Escola Secundária do Marco de Canaveses, a 1 de março. Para Clemente Alves é na escola que se "deve começar a criar a necessidade nas pessoas de preservarem a memória. Um povo sem memória comete os mesmo erros. A história é cíclica. Faz sentido que todos os dias se fale nisso, os jovens, pais e avós deveriam orgulhar-se de que, há 80 anos, os seus antepassados tiveram coragem para mostrar ao regime que aquele não era o caminho. O caminho deve ser de desenvolvimento e liberdade, que permita às pessoas realizarem os seus anseios".

Clemente Alves foi preso aos 20 anos e um dia antes de casar

Na época em que Clemente Alves era jovem não se debatiam temas e as opiniões e ideias não eram colocadas em cima da mesa. Apenas os mais audazes refletiam, individualmente, sobre o regime em que cresciam. Este português foi um deles. A partir dos 15 anos, Clemente Alves sabia que tinha apenas um destino: a Guerra Colonial. Guerra esta que não entendia... "o horizonte para um jovem rapaz era a guerra, sobretudo, em Angola, Guiné e Moçambique. Guerras ativas, onde Portugal gastava 50% do seu orçamento para as manter. Vou para a guerra e que guerra é esta? Não percebia o porquê de ter de ir para África combater. Se aqui estou mal, eles lá devem estar muito pior, porque pegaram em armas", recorda os seus pensamentos na flor da idade.

As dúvidas que surgiram diariamente na consciência de Clemente Alves eram alimentadas também no seio do grupo de ação católica a que pertencia. "Tínhamos por hábito discutir problemas do mundo do trabalho, dos jovens e da guerra colonial". Os porquês nunca deixaram de surgir e as razões e soluções pareciam não existir. A ousadia de Clemente Alves acabou por ser notada pela única força política organizada da época: o PCP (Partido Comunista Português), que vivia na clandestinidade e existia desde 1921.

O PCP tinha como missão "consciencializar" a comunidade e criar uma "força organizada". Embora Clemente Alves ansiasse fazer frente ao regime opressor, confessa que tinha várias "reservas" em relação aos "comunistas", mas o facto de serem "contra a guerra" e defensores da "liberdade" foram motivos suficientes para se juntar ao partido. Aceitou, mas sabia que "mais tarde ou mais cedo", a polícia política havia de o encontrar.

Foi aos 20 anos e um dia antes de casar que Clemente Alves foi algemado e levado para o Forte de Caxias, onde recebeu um tratamento "violento. Mal cheguei ao escritório, chamaram-me ao gabinete, quando entrei dois policias algemaram-me em frente ao diretor que ficou muito surpreendido, porque tinham dito que apenas queriam conversar comigo, levaram-me para o Forte de Caxias, onde me fizeram um interrogatório violento, com murros e pontapés, passei pela tortura do sono... foram tempos difíceis", recorda o ex-preso político.

O audacioso foi condenado, pelo Tribunal Plenário de Lisboa, a 14 meses de prisão, que cumpriu entre o Forte de Caxias e de Peniche, em condições "muito duras". Acabou por ser incorporado no serviço militar e foi preso de novo e, desta vez, enviado para uma companhia disciplinar militar em Penamacor, onde esteve durante meses até decidir desertar. Mudou-se para França e acabou por celebrar o 25 de Abril em Paris.

"O meu 25 de Abril foi em Paris. Foi o dia mais feliz da minha vida"

No estrangeiro, os portugueses eram vistos como os 'cochons', isto é, os "porcos" em francês. "Paris era a segunda cidade do mundo com maior número de portugueses, cerca de 300 mil, mas antes do 25 de Abril só notava os portugueses quem estivesse muito atento... de manhã viam-se multidões com a nossa estatura física que era de subdesenvolvimento, gente pequena, magra e cabisbaixa, a dirigir-se para empregos pouco qualificados. Parecíamos bandos de corvos, o português não se falava e para os franceses eramos apenas os 'cochons', porque vivíamos em bairros de lata, com condições horríveis, esgotos a céu aberto, chovia dentro das casas, cheirávamos mal e aceitava-mos qualquer trabalho".

No dia 25 de Abril de 1974 tudo mudou. Os 'corvos' voltaram a falar o português e abraçaram-se como se fosse o dia mais feliz da sua vida, pelo menos para Clemente Alves foi. "Paris era uma festa. Foi o dia mais feliz da minha vida".

Aos 72 anos, Clemente Alves continua preocupado com as "desigualdades sociais. Esta realidade choca-me. Luto por uma sociedade mais justa, com instrução para todos, direito à saúde, liberdade, cultura, precisamos de alimentar o nosso corpo com alimentos sólidos e o nosso espírito com ideias... discutindo, lendo, indo ao cinema, ao teatro... é fundamental para que a nossa vida tenha qualidade", recordando que quem trabalha deve ter "uma vida digna", terminou.

Presos em Marco de Canaveses

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