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O legado dos Doces das Júlias, em Tendais

A nossa freguesia é rica em hábitos, tradições, costumes, lendas, superstições e todo um conjunto de artes e ofícios que marcam esta bela localidade e a caracterizam com originalidade. A gastronomia não foi esquecida e ainda hoje existem pratos típicos, como as painças, as papas de milho, os formigos (tão habituais do Natal) e claro, os célebres doces tradicionais, que agradam aos visitantes e ganham nomeada, mundo além.

Os doces que irei abordar nestas breves linhas são o Pão Leve (pão de ló), os Merlindes e os Biscoitos de Manteiga. A sua confeção era feita tal como nos dias de hoje, tendo sido substituídas algumas técnicas mais rudimentares, por outras mais modernas. Outrora, era tudo elaborado manualmente, sem ajuda da eletricidade, sem fornos elétricos ou a gás. Com todas estas técnicas, hoje um simples bolo é confecionado em meia hora, mas naqueles tempos já idos, a quantidade era muito superior, até porque muitas vezes estes maravilhosos doces eram o sustento da família. As doceiras iam de terra em terra descalças, de noite ou de dia, fizesse frio ou calor, chuva ou sol. Os doces eram vendidos e o dinheiro embolsado para uma roupa melhor, um par de socos e para ajuda de dívidas e da alimentação das enormes famílias, que caracterizavam tempos passados com muita dificuldade, mas que segundo os mais velhos deixa muita saudade devido à alegria que se fazia sentir.

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Este artigo diz respeito a uma família que possui tradição hereditária na confeção deste manjar. Era a família dos “Linos”, que esteve ao cargo da Júlia de Resende e José de Resende e ficou designado como os Doces das “Júlias”. Primeiramente, será extremamente importante fazer uma breve reflexão sobre esta família e de seguida ir de encontro à tradicional confeção destes doces, bem como histórias de outros tempos. E ainda os “caminhos” atribulados das doceiras na ida e volta das romarias e feiras, locais de venda dos seus famosos bolos.

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Júlia de Resende descende de Lino Resende e Leolina da Rocha. Seu pai era um homem de estatura média, usava bigode e tinha olhos claros, no que respeita a sua mãe, não existem testemunhos vivos, da sua caracterização física e psicológica. Júlia era uma mulher alta, forte e de olhos claros. Corada, muito cintada e bastante sorridente. Até casar, juntamente com seus pais e sete irmãs: Prazeres, Maria Rosa, Piedade, Ana, Encarnação, Maria e Conceição, viveram na casa que pertence hoje ao Herculano Resende Silva em Cimo de Vila, (mais conhecida como casa da Encarnação). Viria a casar, então, aos 17 anos, sendo já órfã de mãe, com José de Resende, filho de Felicidade da Silva e de Antonino de Resende. Não possuíam campo, nem leira. E o jovem casal só viria a pagar o traje do casamento, anos depois de casados, ao carteiro de Meridãos, que tinha uma loja de roupa. Depois de cônjuges, viveram sempre em Cimo de Vila na casa que pertence hoje às suas netas, filhas de Dulce Resende. E mais tarde na que, pertenceu ao seu filho mais novo, Daciano Resende.

José, seu marido (que mais tarde se apelidou de Zé da Júlia) era alto, bem parecido, tinha olhos claros e usava bigode muito retorcido e comprido. Era almocreve e tinha o hábito de falar alto. A mulher por vezes aconselhava-o a falar mais baixo, devido ao facto de os vizinhos pensarem que era briga séria. Desta união nasceram seis filhos: Antero, Glória, Miquelina, Adelino, Dulce e por último Daciano. Nos nossos dias já não restam testemunhos desses tempos idos em família, que possam hoje recordar fragmentos de um passado difícil, mas alegre. Como também das longas e árduas caminhadas de venda dos doces. Eram tempos de miséria, sofrimento, mas de vontade de viver – “tempo mais alegre” em que um simples realejo fazia vibrar e encher os caminhos de gente para dançar.

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José de Resende viria a falecer no dia 21 de Setembro de 1956 devido a um tumor cerebral. Três anos depois Júlia não resistiu e faleceu no dia 11 de Novembro, devido ao agravamento da pouca saúde que desde sempre tivera. (Ambos viriam a falecer da mesma idade – 68 anos). O casal desde sempre se dedicou à confeção dos doces, era uma herança hereditária, pois até já os pais de Júlia executavam esta tarefa. Esta não podia participar exaustivamente na venda, pelas romarias, sua saúde não o permitia e com o nascimento dos 6 filhos, tornava-se mais importante esta atividade, pois o trabalho no campo não era suficiente para o total sustento da família. Com o crescimento dos mesmos, estes tornaram-se o braço direito no desenvolver de todo o processo de confeção dos mesmos. E com a morte dos “cabeças” da família, Dulce foi a peça fundamental no seguimento desta atividade, de modo a mantê-la de pé. Sempre vivera com os pais e com a morte dos mesmos e com duas filhas para criar, deu continuidade a este trabalho e fez dele o seu sustento. Partiu para Lisboa, tal como muitos o fizeram, em busca de melhores condições de vida e uma maior estabilidade no crescimento das suas filhas. Mas foi ela o testemunho para este texto e do que passo a relatar.

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Tinham por norma aquecer o forno com lenha de urze, muitas vezes vinda de Sobreda e depois de confecionados eram sempre cobertos com açúcar em ponto (o que hoje nem sempre se verifica, porque muitas vezes as cavacas de pão leve são cobertas com claras batidas com açúcar). Mais tarde eram vendidos a 10 tostões cada conjunto de 5 rosquilhos, a 30$00 1Kg de merlindes, sendo também o Pão Leve (pão de ló) vendido a esse preço. Os biscoitos de manteiga eram vendidos a 20$00 o Kg. Iam para a festa de S. Macário, Alvarenga, Cabril, Parada, Santa Cristina, Jubileu da Almas… Enfim percorriam quase todas as festas religiosas e profanas, não esquecendo a época da Páscoa e dos tradicionais casamentos da nossa freguesia.

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Era sempre necessário a cozedura de grandes quantidades, as festas muitas vezes eram de mês a mês e os fregueses iam aumentando. Compravam os ovos de porta em porta a 6$00 a dúzia e a farinha e o açúcar ao José Borges. A manteiga de vaca utilizada era confecionada, através do leite extraído dos seus animais, ou compravam-na de porta em porta. Quando era a festa de S. Macário, chegava-se ao ponto de bater 100 dúzias de ovos, partiam sexta à noite ou sábado de manhã, pernoitando três noites na capela, pois só regressavam segunda de manhã.

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De uma certa vez, iam a chegar a Aveloso, com destino a Parada e caíram no Ribeiro das Uchas devido ao mau tempo que se fazia sentir. As socas que traziam calçadas desapareceram por entre as correntes fortes. Não conseguiram passar e ficaram com os doces por vender. Porém, os lavradores do povo de Tendais, com a generosidade que lhes é característica, compraram-lhe os doces e a tia Dulce já não acarretou tanto prejuízo. Outras vezes apanhavam grandes sustos, também no monte de Aveloso, mas desta vez ao regressar de Parada (dia 12 de Agosto de 1964), repararam num homem que se encontrava encostado a um penedo, de perna cruzada e que as olhava de relance. Vinham as duas e também a senhora Rosa e a filha Graziela. De momento pensaram que seria o Sr. Messias (já na altura também fazia doces) que viera na frente, contudo não era ele. Quando contam esta história, anseiam por descobrir quem era o homem que ainda hoje permanece uma incógnita.

Com a ida da tia Dulce para a capital, nenhum descendente direto das “Júlias” continuou o trabalho de há séculos atrás. Nas vésperas da Páscoa e antes da restauração da casa, Antero de Resende e o irmão Daciano vinham fazer os doces para a celebração da Ressurreição do Senhor. Porém, era para consumo próprio ou oferta, porque não iam de festa em festa vender. A neta, Donzília Rocha Resende, foi a última a manter viva o fabrico destes doces, da linhagem mais próxima e direta dos “Linos”. Nunca vendeu para fora, ou andou em festividades pois apenas se limitou a confecioná-los para si ou para quem lhe pedia, tendo mais realce a sua cozedura na época da Páscoa e também para casamentos, ou outras ocasiões festivas.

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Descendo vales, subindo montes, atravessando rios, com os canastrões repletos de doces lá iam as doceiras vender o manjar, que consagrou a nossa freguesia. Destemidas de neve, frio, calor bom tempo ou mau tempo, enfrentavam a distância e percorriam as festas levando os gigos cheios e voltando com eles vazios, olhando para meia dúzia de escudos no bolso, sentindo as mão calejadas, os pés em ferida e o corpo a pedir por descanso. Eram tempo de dor e sem as comodidades, de que nos regalamos hoje em dia.

Lúcia Resende

(Texto elaborado com o testemunho de Dulce de Resende e outras colaborações de conhecedores das histórias e andanças destas doceiras. Algumas das fotografias são da autoria de Helena Figueiredo)