paulo goncalves medico
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Artigo de opinião de Paulo Gonçalves, presidente executivo de Empatia | RD-Portugal, União das Associações de Doenças Raras de Portugal

Quantas vezes já leu ou ouviu “em equipa que ganha não se mexe” ou “se funciona porque vamos mudar”?

Dizem os especialistas que genericamente o ser-humano é avesso à mudança. Quando o faz, fá-lo por uma de duas razões: por vontade própria ou por obrigação. A primeira porque toma uma decisão de percorrer um novo caminho. A segunda porque recebeu um murro no estômago tão forte que a alternativa é desistir. Nenhuma das duas é agradável.

O Serviço Nacional de Saúde é chamado de jóia nacional. E é. Quem teve oportunidade de visitar outros países e utilizar outros serviços de saúde, pode confirmar. Estamos longe de muitos outros por boas razões mas há também melhores.

Em Portugal, as pessoas com doença crónica são na grande maioria tratadas em hospitais públicos. Aqueles com uma doença com tratamento, fazem esse tratamento em hospital. Quando a doença está estável e é possível, fazem-no em casa. A medicação, há muitos anos, vão buscá-la ao hospital. Sempre se disse que era impossível entregar em casa ou numa farmácia comunitária, com todas as garantias de segurança. Há exceções de alguns hospitais que têm projetos piloto, alguns há mais de 10 anos!

Veio o murro no estômago chamado pandemia e provou-se que não só era possível como poderia ficar mais barato ao Estado, isto é, aos nossos impostos. O que nunca se soube é que as Associações de Doentes tiveram um papel fulcral neste sucesso.

Desde logo porque apesar de muitas tentativas de várias entidades incluindo hospitais, havia dois problemas: primeiro, o custo adicional do transporte para o orçamento dos hospitais e a garantia da segurança dos dados dos utentes, o famoso e malfadado RGPD.

A necessidade já existia antes:

  • as farmácias hospitalares recebem mensalmente pessoas com doença crónica, familiares, amigos, bombeiros etc. só para levantamento de medicação hospitalar;
  • doentes ou familiares têm de o fazer em horários convenientes ao hospital e/ou profissionais de saúde, tendo que se ausentar do seu trabalho, com impacto direto na economia;
  • muitas vezes esta medicação é tomada com outra medicação que o médico especialista de determinada doença desconhece;
  • não raras vezes estes doentes crónicos são expostos a ambientes de potencial contágio com outras doenças;
  • o acompanhamento e controlo de adesão à terapêutica é claramente insatisfatório;
  • quantas destas pessoas não têm recursos financeiros ou meio de deslocação para ir mensalmente à farmácia hospitalar?

Então, se se sabe isto porque não mudamos?

Desde o início da pandemia, as associações de doentes pressionaram o Governo para o problema da medicação crónica e a impossibilidade de nos deslocarmos aos hospitais. Foi então criado um grupo de trabalho de especialistas com 90 dias para trazer um relatório para decisão. Esqueceram-se mais uma vez dos especialistas no terreno: as pessoas com doença crónica e os seus familiares. Ainda assim, organizámo-nos e fizemos questão de elaborar um documento muito completo que arrasava com todas as desculpas e demonstrava que poderia ficar mais barato ao Estado.

O resultado final ainda o desconhecemos.

Sabemos que está na mesa do Gabinete da Ministra desde janeiro de 2022. 550 dias são mais de 6 vezes os 90 dias. Suspeitamos que em vez de poupança, o relatório trará mais custos ao Estado, leia-se aos nossos impostos, por uma única razão: não gostamos de mudar!

Uma mudança destas implica mais transparência no processo, alteração do modelo de financiamento dos hospitais e alteração de forças de grupos profissionais. Tudo importante, menos o cidadão com doença crónica, o familiar que pode faltar ao trabalho ou meter um dia de férias por cada deslocação, os horários de funcionamento, a adesão à terapêutica, a qualidade do serviço prestado ou o impacto na economia de tudo isto.

Se o resultado final for ficar tudo na mesma, se os custos dos hospitais com a dispensa de medicação aumentarem, se o número de contágios ou dias de internamento ou até esgotamentos de pessoas que não têm férias, a culpa é toda nossa.

O Grupo de Trabalho de Especialistas fez tão bem o seu trabalho. Só que o murro no estômago não os afetou.