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Já lá vão 36 anos, desde que Zé Maria, assim conhecido entre os amigos, reaprendeu a ser autónomo num mundo às escuras. Os problemas de visão vivem consigo desde bebé, porque nasceu com “um problema no saquinho das lágrimas no olho esquerdo”. Foi operado duas vezes, mas acabou por “cegar totalmente desse olho”.

Apesar de, com dois anos de idade, ficar com visão apenas no olho direito, Zé Maria conseguia “fazer tudo” o que uma criança da mesma idade fazia. “Brincar à apanhada, ao esconde-esconde, jogar à bola e ao peão, ir aos grilos e aos ninhos” faziam parte das rotinas daquela altura.

Os “problemas” começaram na entrada para a escola. “Mesmo usando óculos e sentado na primeira carteira, em frente ao quadro negro de ardósia, não conseguia ver bem as letras de giz que a professora escrevia. Ano após ano, comecei a atrasar-me na escola e reprovei várias vezes”, relembra.

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Se até então as dificuldades já existiam, a partir dos 12 anos acentuaram-se. Com um “descolamento da retina no olho direito e duas operações em plenas férias escolares de verão”, Zé Maria acabou por “cegar totalmente”.

Ficar cego em tenra idade “não foi, na altura, uma tragédia como muitos, às vezes”, lhe perguntam. “Fui perdendo gradualmente a visão e quando já praticamente não via, o meu pai internou-me num colégio para crianças e jovens cegos no Porto. (Instituto de São Manuel)”.

A partir daquele momento, aquela foi a “primeira casa” e os colegas e professores “a nova família”. Lá recorda que aprendeu “a ser cego e a comportar-me como tal, a desenrascar-me. Éramos incentivados a explorar o mundo fora dos muros do colégio, a não ter medo do desconhecido”.

Num regresso ao passado, Zé Maria confessa que no colégio aprendeu “muitas coisas importantes para a vida: braille, técnicas de orientação e mobilidade com e sem bengala, tarefas da vida diária como cozer um botão da camisa, entre outras coisas. Ensinaram-me a importância da escola e do que só ela nos pode dar”. Mas aos dezasseis anos disse adeus a essa “casa” e voltei para junto da família. 

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Hoje, com 48 anos, é Assistente Técnico (Bibliotecas e Documentação), na Biblioteca Municipal de Lousada. O dia a dia é “igual” ao de todas as pessoas. “De casa para o trabalho e do trabalho para casa. No trabalho faço praticamente tudo o que os meus colegas fazem: catalogo os documentos, faço atendimento público, leio histórias às crianças e, por vezes, vou às escolas básicas fazer a hora do conto ou alguma ação de sensibilização”.

Em casa diz “não atrapalhar ninguém, o que é uma grande ajuda. Vejo televisão, ouço rádio, leio ou toco guitarra, mas faço a minha cama”.

A rotina continua no fim de semana. “Ao sábado à tarde vou à ALDAF (Associação Lousadense dos Deficientes, dos seus Amigos e Familiares), da qual sou sócio fundador e atual presidente. À noite vou à Associação Cultural de Santa Marinha de Lodares, do qual sou secretário do conselho fiscal e membro tocador de cavaquinho do grupo de cavaquinhos de Santa Marinha de Lodares”.

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A rotina está controlada, ao contrário das dificuldades e o maior obstáculo que sempre teve de ultrapassar foi “a falta dos materiais didáticos para estudar. Os manuais escolares nunca chegavam em tempo útil, quando chegavam, já não eram necessários ou nunca chegavam. Felizmente, tive a sorte de ter professores interessados e colegas fantásticos que me ajudaram imenso, e claro a sorte de ter uma irmã que passava horas a ditar-me os apontamentos dos colegas. Depois transcrevia para Braille na minha velhinha máquina”.

Mesmo com estes obstáculos, conseguiu “com toda a vontade, persistência e motivação”, ter boas notas e concluir a licenciatura.

Os anos vão passando, mas Zé Maria guarda momentos “menos felizes” que teve por ser cego. “Às vezes digo na brincadeira: é triste ser ceguinho. Lembro-me de cair dentro dum buraco de telecomunicações que me esfolou a perna. De ter caído dentro duma banheira colocada no passeio para peões. Ou ainda de me terem ameaçado com um processo judicial, por ter dado uma bengalada num carro que estava estacionado em cima do passeio, por um senhor que dizia ser advogado e empresário. Mas ainda ando por cá apesar de todos os constrangimentos do dia a dia”.

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Apesar das dificuldades, não gosta de ser tratado como “ceguinho ignorante, incapaz, inútil”.

Este sábado, 15 de outubro, assinala-se o Dia Mundial da Bengala Branca e um dos objetivos da comemoração é motivar e encorajar outras pessoas com problemas da visão a utilizar a bengala, “porque um carro, uma mota, uma bicicleta, um buraco ou um qualquer outro objeto em cima do passeio, é um obstáculo colocado à nossa autonomia, e independência, e que pode pôr em causa a nossa integridade física”.