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Em fevereiro de 2020, Ângela Ferreira deu a conhecer ao país a vontade de engravidar do marido após este ter falecido vítima de cancro em março de 2019. Na altura, a lei da procriação medicamente assistida proibia a conceção de embriões com material genético de um progenitor falecido.

Assim, apesar da clara vontade de Hugo Ferreira de dar um filho à companheira, mesmo depois de partir, a legislação portuguesa não permitia o uso do sémen criopreservado de alguém que tivesse falecido.

Confrontada com a impossibilidade de avançar com uma inseminação utilizando o material genético do companheiro, Ângela Pinheiro recorreu à comunicação social para chamar atenção ao seu caso. Não demorou muito até o país ganhar consciência desta situação e graças ao apoio de 100 mil pessoas, uma petição obrigou a Assembleia da República a debater a alteração da lei.

O esforço e luta da mulher de 27 anos viria a ser compensada pelo veto do presidente da república que a 5 de novembro de 2021 promulgou a nova lei da procriação medicamente assistida, conhecida como “Inseminação post mortem”.

Quatro depois da morte de Hugo Ferreira, nasceu Hugo Guilherme o filho de Ângela Ferreira e do falecido parceiro.

Em entrevista ao Jornal A VERDADE, a mãe do primeiro bebé criado por “Inseminação post mortem” em Portugal, recordou este período de luta até à mudança da lei.

O processo de luta até cumprir o objetivo

Quando o casal estava a tentar engravidar, antes da partida de Hugo Ferreira, nenhum médico ou profissional abordou a possibilidade de continuar com as tentativas de inseminação na eventualidade do falecimento do pai. “Só depois de o Hugo falecer é que me dirigi ao hospital onde me disseram que não iria ser possível continuar com o processo, disseram-me que a lei era muito clara e que não ia ser possível avançar”, conta a Ângela Ferreira.

Esta informação foi “um choque” para a cabeleireira que ainda hoje diz: “Ter ficado mais chocado, não tanto pela falta de informação mas pela maneira como os médicos me diziam as coisas”.

Encarada com uma lei que a impedia de cumprir a vontade de engravidar do parceiro, Ângela Ferreira recorreu aos media para “colocar alguma pressão para no hospital para que me deixassem levar material genético para a Espanha, onde a lei me permitia avançar com o processo”.

Admitindo que, no início desta luta, o objetivo não seria alterar a legislação mas sim, ir para um país onde não existia esse entrave, a cabeleireira de profissão viria esta ideia rapidamente a tornar-se de tentativa de fuga à lei para a sua alteração.

“Decidimos avançar com a petição para que o assunto fosse debatido na Assembleia da República e, entretanto, tive conhecimento que podíamos fazer uma proposta de lei, algo que pudesse ser analisado e votado na Assembleia da República. Nem sabia que isso era possível, depois disto as coisas foram acontecendo quase como uma bola de neve”, conta a pioneira.

A visibilidade do caso foi atraindo a atenção dos portugueses, de partidos e de várias mulheres que passaram por uma situação similar, que se dispuseram todos a ajudar a alterar esta lei. No entanto, “ainda tive um período de incerteza em que achei que esta alteração já não seria para mim”, revela.

Ângela Ferreira diz mesmo não querer ser “hipócrita e dizer que estava a fazer isto pelo bem de todos, estava a fazê-lo por mim, mas, na eventualidade de já não conseguir usufruir desta mudança, pelo menos que mais nenhuma mulher tivesse de passar pelas barbaridades que tive de ouvir”.

A maioria dos advogados e médicos questionados pela mulher cinfanense “diziam-me exatamente a mesma coisa. Não era possível, a lei não permitia e que devia tirar isso da cabeça”. Uma realidade dura a futura mãe acha “que faltou aquilo que, felizmente, o povo português teve, sensibilidade de entender esta situação”. Mesmo “a forma como falavam na Assembleia da República, dizerem simplesmente aquela pessoa morreu, está morta e então não tem vontades…”, deixou marcas na memória.

Contudo, agarrando-se à “vontade de ter um filho do Hugo e de saber que ele próprio teria feito o mesmo por mim”, motivou Ângela Ferreira para continuar com esta luta.

A comunicação social marcou o sucesso desta “história que só ficou conhecida através dos media”, uma parte “principal” deste processo, a mãe de Hugo Guilherme demonstrou o seu agrado com a ajuda dos jornalistas. “O padrinho do meu filho é o jornalista Emanuel Monteiro, uma pessoa que teve um cuidado especial pela forma como contava a minha história e que foi um apoio essencial”.

Dada por mudada a legislação e apercebendo-se de que puderia cumprir um objetivo de longa data, Ângela Ferreira salienta que sentiu: “Alívio, um sentimento de justiça. Muita gente dirigia-se a mim e dizia, mas tens noção daquilo que conquistaste? Ainda hoje não tenho bem essa percepção. No fundo foi uma sensação de dever cumprido”.

Impacto na sociedade e na vida de outras mulheres

No início dos esforços para alterar a legislação, Ângela Ferreira e a equipa de pessoas que a ajudou aperceberam-se de outras situações similares à da cinfanense. “Quando a minha história ficou pública houve várias mulheres que entraram em contato comigo. Umas que queriam realizar o processo e outras que tinham passado por essa experiência já há 20 anos atrás e que hoje tinham esse arrependimento de não terem conseguido”, adianta.

Tendo sido a primeira mulher a chegar tão longe ao ponto de alterar uma lei, a mãe de um bebé 18 meses, reforça que não se sentiu como uma pioneira. “Levei tudo sempre de uma forma natural, há 20 anos atrás as coisas não eram o que são agora e mesmo na altura em decidi avançar. As coisas para mim já era um bocadinho mais fáceis, já havia uma alteração legislativa que permitia que eu fizesse a fertilização independente e tudo. Portanto, acho que isto aconteceu comigo porque tinha de ser a minha batalha”, confessa.

Os casos de outras mulheres usufruírem desta mudança acabam por chegar por mensagem ou rumor aos ouvidos da mulher responsável por este avanço da lei. “Acho interessante toda as mensagens que recebo mas a que mais me marcou não foi de uma mulher mas sim de um homem a agradecer-me”, conta.

Às mulheres de Portugal, Ângela Ferreira diz mesmo “para serem fortes e resilientes, mas para não acharem que devem levar o mundo às costas. Chorar faz parte, estar mal faz parte. Hoje em dia diz-se que temos de aguentar tudo e para sermos super mulheres mas não somos. Faz tudo parte, mas acima de tudo importa fazerem aquilo que nos fizer bem a nós, o resto é barulho de fundo”.