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Penafiel
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Do arame farpado à liberdade de Abril: memórias de um soldado na Guiné

Entre junho de 1972 e junho de 1974, José Claudino da Silva escreveu 1108 cartas enquanto cumpria o serviço militar na Guiné. Recebeu 692. Estão quase todas guardadas, como um diário da vida em tempo de guerra e de mudança.

Redação

José Claudino da Silva, hoje com 74 anos, recorda com lucidez e emoção os  tempos em que foi mobilizado para a guerra colonial. Aprovado na inspeção militar em 1971, ingressou nas Forças Armadas em janeiro do ano seguinte, começando uma viagem que o levaria da recruta no Porto até Fulacunda, na Guiné, onde esteve até junho de 1974.

Sem medo, mas com um firme sentido de dever, Claudino foi preparado para  “defender Portugal e o regime”. Apesar da perda de um amigo próximo na guerra, manteve-se firme na missão. “Estava preparado, não senti medo, mas estranhei estar rodeado de arame farpado, daí as minhas inquietações, e só  depois percebi que não tinha liberdade”, diz. Foi como condutor de viaturas que encontrou o papel no terreno, ajudando a resgatar carros presos, em zonas minadas e perigosas.

Mas foi fora do campo de batalha que Claudino encontrou uma forma de resistir ao isolamento: a escrita. Escrevia diariamente, mais do que uma carta por dia, e não apenas para si, mas também para os colegas que não sabiam escrever. “Cheguei a escrever cartas de amor para as namoradas deles, copiando o que dizia à  minha”, conta com humor.

Ao todo, redigiu 1108 cartas e recebeu 692. Hoje, guarda-as como um tesouro: um retrato íntimo e honesto da vida de um soldado, dos medos silenciosos e da paixão pela palavra. É, para ele, a forma de manter viva a memória de um  tempo que moldou uma geração. O 25 de Abril chegou quando Claudino ainda estava na Guiné. Sentiu, de imediato, uma diferença no comportamento dos seus superiores: mais respeito, menos  distância. “Foi a primeira vez que senti que algo estava mesmo a mudar".

De regresso a Portugal, mergulhou nas transformações da nova liberdade: frequentou comícios, escreveu para jornais, inclusive em protesto contra o modo como os soldados eram retratados e tratados. Após o regresso da guerra na Guiné, encontrou um país diferente e com mais  liberdade. “Antes da Revolução escrevi um pequeno texto para o Século Ilustrado, fui censurado pelo meu capitão”, recorda.  

“O 25 de Abril deu-me voz. Deixei de ter medo"


“O 25 de Abril deu-me voz. Deixei de ter medo. Passei a escrever sobre tudo e ainda hoje escrevo”, afirma Claudino, que guarda desses tempos não só as cartas, mas também os poemas e textos que continua a produzir, com uma visão crítica sobre o país, sobretudo no que toca à educação e ao futuro da juventude. Em criança lembra como foi colocado na última fila da sala  de aula por ser de uma zona pobre, e como, mesmo assim, nunca deixou de  querer aprender e escrever.

Com o 25 de Abril, também o contacto com a cultura e a liberdade de expressão se transformaram. “Antes não podia ler Marx. Depois comecei a ir a comícios e a ler tudo o que antes era proibido".

Num testemunho emocionado, Claudino alerta, ainda, para os perigos da regressão social: “Temo não por mim, mas pela minha neta. A liberdade de hoje existe, mas não sabemos interpretá-la".

Num paralelo com a infância, refere que Portugal continua a liderar negativamente no número de crianças institucionalizadas, como há 50 anos. “Isso não é liberdade. Há problemas que resistem à revolução".

Esta história é um testemunho vivo de um tempo difícil, mas também de esperança e transformação. As cartas que escreveu, e que hoje guarda, são mais do que palavras, são pedaços de história, de vida e de liberdade.