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Marco de Canaveses
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“Era calor e risotas”: A rotina da apanha do mirtilo em Sande pelos olhos de Marisa Alexandra

Cinfanense recorda trabalho sazonal que a levou a cruzar o Douro para os campos de mirtilo em Sande, em Marco de Canaveses.

Redação

No Norte de Portugal, a colheita de mirtilo faz-se entre junho e setembro — e, durante esses meses, os campos de Sande, em Marco de Canaveses, ganham vida com dezenas de pessoas que ali se juntam para o trabalho sazonal. Marisa Alexandra, natural de Cinfães, foi uma delas durante três verões. “Não era a primeira vez, nem o primeiro ano”, começa por dizer. “No ano passado fui, mas este ano já não fui porque recebi uma proposta de trabalho num lar — que é onde estou agora.”

Apesar da mudança de rumo, recorda com carinho a azáfama da apanha: “Se não tivesse ido para o lar, voltava. Claro que sim.” Os campos em Sande são vastos e, por isso, é comum formar-se uma pequena comunidade sazonal, composta por trabalhadores de vários pontos da região: “Vinha pessoal de Tarouquela, de Cinfães, do Marco… Cada grupo juntava-se e formavam-se ali carrinhas cheias de gente.”

“Eram campos grandes, muitos grupos, muita animação”

A rotina era simples, mas exigente. “Atravessava a barragem, e em vinte minutos estava em Sande. O patrão que nos levava era meu vizinho.” Os dias começavam cedo. “Agora já não me lembro se era às 7 ou às 8, mas era cedinho. Levava-se o saco com o almoço e trabalhava-se o dia todo.” As pausas eram breves: “Tínhamos uma hora para comer, cada um levava o que queria. Sandes, tupperwares… Comíamos à sombra das árvores.”

Apesar do calor, a boa disposição marcava os dias: “Muito calor, sim, mas com risotas e com tudo, o dia passava num instante.” Os grupos, embora separados nos campos, conviviam à ida e à vinda. “Já se ia a falar, da nossa vida e da dos outros”, diz, entre gargalhadas.

A Marisa chegou ao trabalho nos mirtilos depois de já ter passado pelo Douro. “Esse patrão levava pessoal do Douro o ano todo, e quando começava a força dos mirtilos em Sande, levava carrinhas cheias de pessoal. Era uma apanha mais a eito.” Ainda se lembra de ver chegar grupos “de brasileiros, ucranianos, até pessoal de Lisboa”, todos alojados nas redondezas. “O patrão tinha casas arrendadas para isso.”

Trabalho duro, mas com sentido de comunidade

A apanha dos mirtilos exige resistência ao calor e paciência para o detalhe. “O trabalho faz-se bem, o que custa é o calor”, confessa. Ainda assim, nunca sentiu que fosse um trabalho “perigoso”. “Era preciso cuidado, sim — não se comiam os frutos, porque tinham inseticidas. Lavávamos sempre as mãos antes de comer.”

Nos intervalos, havia tempo para conversas, amizades novas e músicas ao longe. “Não dava para estar sempre juntos, porque os campos são muito grandes, mas às vezes ouvíamos música, cantava-se, e quando nos encontrávamos era sempre boa disposição.”

Um caminho que muitos podiam seguir

Apesar de agora estar a trabalhar num lar — “Adoro lidar com idosos, para mim são os meus velhinhos” —, Marisa não esconde as saudades. “Era o dinheiro que se ganhava e era também pelas borgas dos grupos.” Conta que a filha, de 16 anos, se calhar também lá irá trabalhar um dia: “Se ela não estiver a frequentar a escola, quero ver se ela arranja lá trabalho e ganha uns dinheiritos.”

A apanha de mirtilos, diz, é também uma oportunidade para os mais jovens aproveitarem o verão de forma útil. “Era muito bom haver grupos de jovens a fazer isto. É um trabalho leve, não perigoso, e faz-se bem.”

Marisa é o rosto de muitos trabalhadores sazonais que, verão após verão, percorrem as estradas do Douro e de Marco de Canaveses em busca de oportunidades. Na apanha do mirtilo, encontrou não só uma fonte de rendimento, mas também memórias que, como o sabor do fruto que colhia, continuam frescas.