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Opinião
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Descentralização em Portugal: Entre a promessa e a perpetuação do atraso

A descentralização é uma daquelas ideias que, à primeira vista, parece  indiscutivelmente virtuosa. No entanto, a realidade portuguesa desmonta essa ilusão. 

Redação

Portugal continua a ser um dos países mais centralizados da Europa, com a  administração central a deter a maior parte das receitas e despesas do país. Esta  concentração de recursos no governo central contrasta com a promessa de autonomia  local, perpetuando disparidades regionais e limitando o potencial de crescimento  harmonioso. Enquanto isso, a desertificação do interior avança, e as desigualdades  regionais agravam-se, denunciando a falha estrutural do nosso modelo. Afinal, países  como a Suíça e a Alemanha têm demonstrado que uma distribuição mais equilibrada do  poder pode potenciar o desenvolvimento e reduzir desigualdades. Em Portugal, contudo,  essa promessa continua a ser uma miragem. Evoca conceitos nobres como autonomia,  eficiência e proximidade da decisão ao cidadão. Contudo, em Portugal, a  descentralização tem sido mais uma miragem do que uma realidade tangível,  frequentemente reduzida a um expediente político para esvaziar responsabilidades do  poder central sem conferir os meios necessários aos poderes locais. O resultado? Um  país onde a promessa de governação de proximidade se dissipa na inércia burocrática e  no centralismo disfarçado de reforma. 

Olhando para os países que efetivamente conseguiram distribuir poder e riqueza  territorialmente — como a Alemanha, que através dos seus Länder garante autonomia  real na gestão dos impostos locais, ou a Suíça, onde o federalismo assegura uma  descentralização financeira eficaz — percebe-se que descentralizar não é apenas  transferir competências. Exige um redesenho estrutural profundo, um compromisso com  a autonomia fiscal e, acima de tudo, uma cultura política que aceite perder poder em  Lisboa em prol de um país mais equilibrado. Portugal falha precisamente neste ponto: o  poder central está habituado a um domínio absoluto, relutante em ceder o real controlo  das decisões estratégicas às autarquias e às regiões. O exemplo do fracasso do Fundo de  Coesão, que muitas vezes serviu apenas para reforçar a dependência das autarquias ao  invés de fomentar autonomia real, ilustra bem essa resistência do Estado em abdicar do  comando centralizado. 

O modelo português de descentralização não é mais do que um meio-termo disfuncional  entre municipalismo, que confere autonomia real às cidades na gestão dos seus próprios  recursos, e centralismo, onde o Estado mantém um controlo absoluto sobre as políticas  públicas e os fluxos financeiros. O que se vende como uma desconcentração do Estado  resulta, na prática, num espartilho burocrático que perpetua as desigualdades regionais.  As câmaras municipais receberam novas responsabilidades na educação, na saúde e nos  transportes, mas sem uma correspondência adequada nos recursos financeiros e  humanos. Transferem-se funções, mas não poder de decisão. Delegam-se encargos, mas  não se confere liberdade de ação. Os municípios tornam-se assim meros braços  administrativos do Estado central, sem a autonomia necessária para inovar e adaptar  políticas às realidades locais. 

Além disso, a ausência de um verdadeiro regionalismo agrava o problema. Portugal  continua refém de uma organização administrativa que ignora a complexidade territorial  do país. Com uma capital que absorve desproporcionalmente investimentos e decisões, 

o interior definha, incapaz de reter população e atrair desenvolvimento. O debate sobre  a regionalização, enterrado após o referendo de 1998, nunca foi recuperado com  seriedade. No entanto, sem um modelo de governo intermédio eficaz, capaz de fazer a  ponte entre o Estado central e os municípios, as assimetrias persistirão e até se  acentuarão. 

A verdadeira descentralização não se faz apenas com transferências de competências ou  repartição de verbas. Exige uma reforma estrutural que passe por três pilares essenciais:  autonomia fiscal, redistribuição do investimento público e um modelo de governação  regional robusto. Nenhuma cidade ou região pode ser verdadeiramente autónoma se não  tiver controlo sobre os seus próprios recursos financeiros. Não é aceitável que  municípios dependam de um sistema de financiamento assente essencialmente em  transferências do Orçamento do Estado, sem mecanismos eficazes de captação de  receita própria. Um modelo descentralizado sem autonomia fiscal não é  descentralização: é servidão. 

Portugal não pode continuar a adiar esta discussão por receio das suas implicações  políticas. França, por exemplo, enfrentou desafios semelhantes e conseguiu implementar  um modelo de descentralização robusto com a criação das regiões administrativas,  conferindo maior autonomia às autoridades locais sem comprometer a unidade do  Estado. Um país que se quer moderno e competitivo não pode depender de um centro  hipertrofiado e de periferias condenadas à estagnação. A descentralização não deve ser  uma bandeira eleitoral esvaziada de conteúdo, mas um projeto transformador que rompa  com a lógica de um Estado paternalista e ineficaz. A pergunta não é se Portugal precisa  de descentralização, mas sim se estamos dispostos a fazer dela uma realidade e não uma  ficção conveniente. 

Se continuarmos a confundir descentralização com delegação de encargos, manteremos  o pior dos dois mundos: um país centralizado na tomada de decisão e fragmentado na  responsabilidade da sua execução. Se Portugal quer romper com este ciclo vicioso, a  sociedade civil deve pressionar os líderes políticos a assumirem compromissos  concretos. Já passou tempo suficiente de promessas e discursos bem-intencionados. Se a  descentralização fosse realmente uma prioridade, veríamos reformas concretas e  eficazes em ação. O verdadeiro entrave à reforma não é a sua complexidade, mas sim a  resistência em abrir mão de um modelo de poder que há muito se perpetua em Lisboa.  Precisamos de um pacto nacional pela descentralização, que obrigue Lisboa a abdicar  do seu poder excessivo e a empoderar as regiões de forma definitiva. Caso contrário,  corremos o risco de perpetuar um país onde as oportunidades continuam desigualmente  distribuídas e o interior luta para manter a sua vitalidade. É imperativo refletirmos sobre  que Portugal queremos: um país onde o progresso se distribui de forma equilibrada ou  um onde as oportunidades se concentram sempre nos mesmos lugares? Será que  estamos dispostos a aceitar essa condenação histórica? O futuro de Portugal depende da  coragem para romper com este ciclo de inércia. Está na hora de exigir um modelo que  verdadeiramente empodere as regiões e cidades, sob pena de perpetuarmos um país de  oportunidades concentradas e desigualdades crónicas. E nessa ilusão de  descentralização, o único progresso será o do imobilismo.

Artigo de Gabriel Mondina, jurista e estudante de Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias na Universidade Lusíada do Porto.