Na noite de Sexta-Feira Santa, Amarante mergulha na escuridão para acolher a secular Procissão do Enterro do Senhor, tradição religiosa profundamente enraizada na cidade do distrito do Porto.
Na cidade de Amarante, distrito do Porto, a noite da Sexta-Feira Santa é marcada por um silêncio reverente e por uma tradição que se mantém viva há centenas de anos: a Procissão do Enterro do Senhor. A cerimónia, cuja origem se perde no tempo, é considerada "imemorial" pelo pároco local, padre José Manuel Ferreira, que reconhece que já no século XVIII há registos da sua realização.
"Esta é uma tradição que se perpetuou e ainda hoje celebramos", sublinhou o sacerdote à agência Lusa, lamentando que as Invasões Francesas de 1809 tenham destruído os arquivos da Santa Casa da Misericórdia de Amarante — entidade organizadora da procissão, fundada em 1529 — apagando assim registos mais antigos da celebração.
A procissão tem início na Igreja da Misericórdia e percorre, em marcha lenta e silêncio quase absoluto, as ruas estreitas do centro histórico, iluminada apenas por velas e marcada por momentos de intensa comoção. A imagem de Cristo morto, transportada em ombros pelos fiéis, avança envolta numa atmosfera solene e comovente, escoltada pelos bombeiros da cidade.
"O elemento unificador é o esquife, o lugar onde Cristo morto vai aos ombros", frisou o padre José Manuel Ferreira, acrescentando que a música fúnebre executada pela banda local guia o cortejo pelas ladeiras e vielas.
A escuridão da noite é interrompida apenas pelo som da matraca, um instrumento tradicional em madeira e metal que, ao ser agitado, produz um som seco e inquietante, reforçando o ambiente de recolhimento.
A caminhada espiritual passa por três outras igrejas históricas: São Pedro, São Domingos e São Gonçalo. Em cada uma delas são evocados episódios da morte de Jesus, numa espécie de via-sacra urbana que culmina na travessia da emblemática Ponte de São Gonçalo.
Este momento cénico, vivido sob um silêncio absoluto, concentra dezenas de fiéis no estreito tabuleiro, reforçando a mística de um dos momentos mais simbólicos da celebração pascal amarantina.
Um dos elementos mais marcantes da procissão são as seis bandeiras com 12 telas representando cenas da Paixão de Cristo, levadas por irmãos da Misericórdia, trajados com os seus tabardos tradicionais.
As peças exibidas são réplicas das telas originais, guardadas com zelo no museu da instituição. “Estão muito bem conservadas”, assegurou Manuel Dias Teixeira, vice-provedor da Santa Casa, lembrando que a organização da procissão “é um dever dos irmãos”, conforme os estatutos.
No passado, o Sermão da Paixão era proferido por pregadores de renome, contratados especialmente para a ocasião. Hoje, essa responsabilidade cabe ao pároco da cidade, que conduz o momento final da cerimónia, na Igreja da Misericórdia.
A celebração da Páscoa em Amarante não termina na Sexta-Feira Santa. No domingo e na segunda-feira de Páscoa, as quatro paróquias da cidade recebem o tradicional Compasso Pascal. Num ambiente de festa, as cruzes são levadas de casa em casa, acompanhadas pela banda de música da cidade, numa visita que é muitas vezes aplaudida pelas famílias que esperam à porta, dando continuidade ao espírito comunitário e devocional da quadra.